terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O Tamanho de Um Personagem

Recentemente, passando olhos sobre um dos inúmeros e-mails de propaganda que recebo diariamente, deparei-me com o anúncio do lançamento em DVD do filme O Incrível Homem Que Encolheu (1957). Bateu um saudosismo. Esse fazia parte de uma penca de filmes em preto-e-branco, produzidos pelos EUA entre os anos 50s e 60s, e que passavam nas Sessões da Tarde da TV na minha infância. Digamos que esses filmes foram uns tijolinhos que acabaram construindo os alicerces de meu gosto atual pela ficção científica. Enquanto comprava o DVD pela internet, lembrei-me de que o filme era baseado em um romance de Richard Matheson, e que eu tinha, por acaso, o livro ali na estante. Decidi lê-lo, para comparar com o filme que chegaria em breve.
Naquele momento me dei conta de algo perturbador: na verdade, eu nunca havia efetivamente lido nada do Matheson, apesar de meus quilômetros de leitura de FC clássica! E, ainda assim, conhecia muito de sua obra. Eu explico: ainda que não com a frequência nem a badalação de um Stephen King, Richard Matheson é um dos autores de FC com mais textos adaptados para o cinema e a TV. No livro O Incrível Homem Que Encolheu (Editora Novo Século), por exemplo, além do próprio romance que originou o filme que eu adquiri, temos contos como "Pesadelo a 20.000 Pés", transformado duas vezes em episódio da série Twilight Zone, a primeira para a TV (com William Shatner) e a segunda para o cinema (com John Lithgow); "A Caixa", que também virou episódio de Twilight Zone (um dos melhores, na minha opinião) e depois filme de cinema com Cameron Diaz; "Encurralado", transformado em filme homônimo dirigido por Steven Spielberg (Duel – 1971). Todos também conhecem, com certeza, o romance "I Am Legend", ainda que seja em sua primeira adaptação para o cinema em 1971 (The Omega Man, com Charlton Heston), ou na mais recente, com Will Smith (Eu Sou a Lenda).
Fico curioso sobre por que a obra de Matheson é considerada tão compatível com as artes visuais (cinema e TV). Também fico surpreso ao retirar o livro da estante e descobrir, na orelha, que Matheson é reverenciado por autores veteranos de peso, a saber: Stephen King, Ray Bradbury e Dean Koontz. Lendo o livro, descobri a explicação para as duas coisas.
Faz pouco tempo que andei debatendo, aqui pela internet, a respeito da nova geração de autores da ficção científica brasileira (FCB): quem são, quanto valem e o que se pode esperar deles, e também sobre o futuro de nosso subgênero favorito. A meu ver, discutir sobre o quanto a literatura brasileira de FC precisa conter elementos caracteristicamente tupiniquins tem lá sua importância, mas é um fator secundário ou até terciário no momento, tal é a falta de cuidado de nossos jovens escritores, excitados com as facilidades para publicação trazidas pelas vias virtual e
digital a ponto de “publicar” (ou “tornar público”) seus textos prematuramente, sem maiores cuidados de amadurecimento e aperfeiçoamento. Seria como se um grupo de jovens confeiteiros ficasse discutindo a cor do glacê da cobertura, enquanto não são capazes de fazer um bolo cuja massa tenha consistência e sabor decentes.
Nesse aspecto, Richard Matheson deveria ser leitura obrigatória para quem que ser primeiro um “bom escritor – period”, e depois um “bom escritor de FC”.
O Incrível Homem Que Encolheu narra a história de Scott Carey, que durante um passeio de barco é envolvido, em alto mar, por uma misteriosa nuvem de gotículas esverdeadas que lhe provoca um estranho “formigamento” no corpo. Tempos depois, descobre que começou a encolher. Cerca de 3,5 milímetros por dia. Contínua e inexoravelmente. O texto começa quando o personagem conta com aproximados 21 milímetros, ou seja, cerca de uma semana antes de seu suposto total “desaparecimento”. Do porão de casa, onde se encontra confinado, Carey rememora todos os eventos que o levaram até ali, quando sua vida se resume a tentar sobreviver, buscando comida e tentando escapar de uma voraz aranha viúva-negra, que se transforma em sua nêmese e que a cada dia lhe parece maior. Guardadas as quilométricas distâncias, o início do
texto me fez lembrar A Metamorfose, de Kafka, pela situação claustrofóbica e insólita do protagonista.
Quando se assiste o filme O Incrível Homem Que Encolheu, cujo roteiro é assinado pelo próprio Matheson, compreende-se por que esse autor tem sido tão requisitado pelas telas grande e pequena. O que se assiste é uma reprodução fiel do que se vê na tela mental quando se lê o livro. A capacidade descritiva de Matheson, em seu detalhamento e sua fluidez, inclusive nas cenas de ação, são um paraíso para qualquer roteirista. Uma das principais (e inevitáveis) perdas do filme em relação ao livro é a mudança da estrutura literária, de cenas de dura luta pela sobrevivência entremeadas por flashbacks habilmente enxertados, para uma estrutura absolutamente linear em termos de passagem do tempo. Entretanto, mesmo que o filme seja
inferior ao livro, como acontece de hábito nessas adaptações, Matheson conseguiu preservar, mesmo na tela grande, o que faz desse texto uma obra-prima. Sem esse “algo”, O Incrível Homem Que Encolheu não seria muito diferente de dezenas de textos medianos de FCB que abundam em miríades de novas coletâneas organizadas e publicadas ao longo do ano por nossas valentes editoras. Esse “algo” é o que descrevo a seguir, e é um ponto básico a que todo aspirante a escritor deveria prestar especial atenção, seja qualquer um o gênero de literatura em que se aventure.
Richard Matheson é um genial criador de personagens. Por mais absurda e inverossímil que seja a premissa (um homem que encolhe???), cuja explicação “científica” remete às mais simplórias origens dos poderes de super-heróis da Marvel, Scott Carey é tão humano que é capaz de fazer o leitor aceitar sua situação, consentindo com suas dificuldades colossais, compadecendo-se de sua estupefação e desespero crescentes. Carey transita da incredulidade para a revolta, da revolta para a barganha, da barganha para a depressão, como qualquer vítima de uma fatalidade. Só no final, a compreensão e a aceitação são capazes de redimi-lo.
As surpreendentes dificuldades para se escalar uma geladeira como se fosse o Monte Everest em busca de uma caixa de bolachas mofadas, quando habilmente descritas, ainda assim só seguram um texto por um tempo limitado. Em pouco tempo, mesmo o mais estupefato leitor se acostuma com a diferença das escalas. Isso apenas se mantém até o fim, ao longo de cerca de duzentas páginas, porque o leitor é levado a compartilhar com Carey as progressivas e lentas mudanças de sua perspectiva pessoal, não apenas em relação ao mundo circundante, mas em relação a si mesmo.
A princípio, vê com desesperada impotência a perda de sua identidade como “macho alfa”, provedor e pai de família. Enquanto encolhe, sua perda de autoestima cria um abismo cada vez maior entre ele e sua esposa, no que se refere ao sexo. A filha pequena (que não existe no filme), a cada dia se transforma em uma ameaça cada vez maior a sua integridade física. Em sua ingenuidade infantil, vai aos poucos tratando Carey não mais como um pai, mas como um igual, e depois como um brinquedo. Mais tarde, já preso no porão, Carey se vê privado até mesmo de suas ilusões pessoais acerca de sua vida anterior. Por exemplo, quando depois de
muitos dias volta a ver Louise, sua esposa:

“De repente, a enorme figura moveu-se diante da gelatina incolor de suas lágrimas. Aquilo nunca lhe havia ocorrido de forma tão contundente. Por não vê-la, baseando-se apenas em seu próprio físico, pensava nela como alguém em quem podia tocar e abraçar, ainda que soubesse que não era assim. Agora, entendia por completo. E aquele era um cruel peso que esmagava qualquer lembrança.”

A aranha, curiosamente, é usada por Matheson como a síntese de tudo aquilo que o prende, limita e impede de triunfar. Em dado momento, quando a depressão o leva a decidir-se a colocar um fim precoce à própria vida, um sono reparador, provavelmente adoçado por um sonho esquecido (quem de nós nunca viveu algo assim em um momento de grande crise?), faz com que Carey desperte tomado por uma surpreendente vitalidade e disposição para lutar. Ele tem que matar a aranha! Afinal...

“Aquela aranha era imortal. Era algo mais que uma aranha. Era o conjunto de todos os horrores desconhecidos do mundo, fundidos num terror indescritível. Era o conjunto de todas as ansiedades, inseguranças e temores de sua vida na forma de um corpo repugnante e negro como a noite.”

Superados seus obstáculos cada vez maiores, passo a passo, chega o momento final em que Carey sofre a derradeira e definitiva mudança de perspectiva em sua vida, a redentora, a que faz com que o leitor se coloque a seu lado como um igual e vivencie a doce esperança frente ao futuro. Tal conclusão é igualmente destacada no livro e no filme, demonstrando que é exatamente a essência de tudo que Matheson pretendia dizer com a história. Um pequeno trecho, apenas para reflexão:

“Porque o milímetro era um conceito humano, não um conceito da natureza. Para o homem, zero milímetro significa ‘nada’. O zero significava o nada. Mas para a natureza não existia o zero. A existência sucedia-se em intermináveis círculos. Naquele momento, pareceu-lhe muito simples. Nunca desapareceria, porque no universo a não existência carecia de sentido.”

O Incrível Home Que Encolheu funciona porque Scott Carey é um grande personagem. Quanto mais encolhe, maior fica. E se autores como Stephen King, outro grande criador de personagens, declara abertamente sua admiração por Matheson, o círculo fecha e tudo se explica.
Literatura é sobre humanidades. É sobre temores, dúvidas, emoções, alegrias, júbilo, tristezas, esperanças, tudo humano.
Pouco importa se esse humano tem escamas ou tentáculos, se é um gigante ou tem milímetros de estatura. Em cada um desses casos, o escritor tem que dar ao leitor algo a que se agarrar, algo com que se identificar. Esse algo é o elemento humano, é a quantidade de realidade e semelhança com a própria essência que é capaz de encontrar num personagem. Quando encontra isso, o leitor alegremente se rende ao escritor e abraça sua história, pegando carona nas humanidades de personagens que o levam a pensar, sentir e vivenciar coisas que muitas vezes têm, outras vezes nada têm a ver com seu cotidiano e sua vida. E não é justamente isso o que nós, leitores, buscamos em um bom livro?

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Razão e Sensibilidade no Planeta dos Macacos

Eu no Planeta dos Macacos

ATENÇÃO: SPOILERS!!!!!

Foi o Chacrinha quem entrou para a História com a frase: "Na televisão nada se cria, tudo se copia". A frase (genial) traduz uma realidade que persiste nos dias de hoje, sem esperança de cura. Basta observar como o enredo das novelas brasileiras "chupa" os plots de filmes e seriados estadunidenses. "A Viagem" e "O Ilusionista", "Kubanakan" e "John Doe", são exemplos clássicos. Mais recentemente, a cena da morte de Salomão Hayalla na atual novela "O Astro" e seu paralelo com a cena da morte do Comediante no filme "Watchmen" causou comoção na internet, e creio que ainda pode ser vista nos youtubes da vida.

Mas essa "cultura da imitação" acabou transcendendo a telinha e invadindo a tela grande. No cinema, como se não bastasse a aberração de Bollywood, o cinema tipo Z indiano que copia discaradamente os blockbusters dos EUA, Hollywood começou a copiar a si mesma. Uma onda de remakes, muitos deles demonstrando uma flagrante intenção de faturar ($$$) apostando num cavalo já conhecido como campeão ( o famoso "aposta na barbada"), outros absolutamente desnecessários, dado o pouco tempo passado desde o filme original ou o enredo que nada de novo traz, nem sequer em termos de homenagem à obra-mãe.

Mas existem, felizmente, nesse inferno do apagão criativo que se tornaram o cinema e a TV, as famosas exceções que confirmam a regra. Uma delas, na minha opinião, está sendo a ressurreição da franquia "O Planeta dos Macacos".

O francês Pierre Boulle, autor do livro Le Pont de la Rivière Kwaï(1952), que em 1957 foi transformado por David Lean num filme superpremiado, escreveu em 1963 sua obra La Planète des Singes, que em 1968, a exemplo do irmão mais velho, também se transformaria em filme de sucesso pelas mãos de Franklin J. Schaffner. "O Planeta dos Macacos", estrelado por Charlton Heston e por Roddy McDowall, que sempre me impressionou pela transparência com que conseguia transmitir suas típicas expressões faciais acima da pesada maquiagem de Cornelius (no cinema) e Galen (na TV), transformou-se rapidamente em cult. A alegoria da sociedade símia estratificada em classes de orangotangos (administradores), chimpanzés (cientistas) e gorilas (militares), mostrando os esforços extremados de uma cultura que tenta, desesperadamente e por todos os meios, ocultar uma verdade que pode fazer ruir toda a sua estrutura de poder e domínio, aliás bem familiar ao nosso mundinho humano, acabou gerando quatro outros longas para o cinema e uma série de TV.

A "cultura da imitação" trouxe "O Planeta dos Macacos" de volta em 2001, numa releitura de Tim Burton que certamente não causou o mesmo impacto da primeira obra, mas em alguns aspectos é mais fiel ao livro de Boulle do que o filme de 1968. E agora, em 2011, somos brindados com "O Planeta dos Macacos - A Origem", dirigido por Rupert Wyatt. E a despeito de minha condição de fã incondicional da série (tenho todos os DVDs), dois comentários fizeram crescer exponencialmente minha vontade de ver esse filme. Primeiro: "Não é uma boa ficção científica; é cinema de alta qualidade!" Segundo (este vindo de várias pessoas diferentes): "Amanhã vou ver de novo!"

A releitura do Planeta dos Macacos me parece, em vários sentidos, bem mais racional e comedida do que a delirante versão dos anos 60/70s. Na primeira versão, a explicação para a ascenção da cultura símia é a volta no tempo do casal de macacos inteligentes do futuro, Zira e Cornelius, que em nosso mundo acabam tendo um filho, César, que quando adulto irá liderar a revolução dos macacos. Estes, após uma misteriosa praga que extingue todos os cães e gatos do mundo (!), se transformam em uma combinação de animais de estimação/empregados domésticos (!!). O ponto mais constrangedor que nós, fãs, costumamos ignorar em nome do amor à obra, é que não se explica como a inteligência de César, o macaco-herdeiro de um outro mundo, acaba "contaminando" os macacos do nosso tempo, dando origem a toda uma civilização. Nesse ponto o novo filme dá um show. Nada de viagens no tempo. Indústria farmacêutica!!!! Uma nova droga pesquisada por um grande laboratório, em busca da cura do Mal de Alzheimer, acaba trazendo como efeito colateral um extraordinário upgrade na inteligência de uma das macacas-cobaia, e essas habilidades inadvertidamente acabam se transmitindo ao seu filhote, que se chamará... César!

No filme, James Franco cumpre bem o serviço, como de hábito. Freida Pinto encanta por sua beleza. Tom "Draco Malfoy" Felton, após o longo estágio na saga de Harry Potter, atinge o grau de Doutorado em Personagens Antipáticos. E John Lithgow me deprime. O sujeito é tão espetacular que sinto raiva, ao pensar que já caminhei ao lado dele numa rua de Nova Iorque e nem tive a coragem de pará-lo e dizer: "Amigo, você É O CARA!" Os efeitos especiais são tão perfeitos que você até esquece que, em muitos momentos, os atores reais estão na verdade contracenando com alguma tela azul. A batalha na ponte Golden Gate, coberta por um daqueles "fogs" que caem como uma enxurrada branca para matar de raiva os fotógrafos-turistas, está destinada a assumir o status de clássica. O virus que se dissemina, prometendo causar uma epidemia que acabará dizimando a maior parte dos seres humanos, serve como pano de fundo ideal apara a promessa da "virada" (Nota: fique no cinema uns cinco minutos após terminado o filme, para ver essa cena extra!).

Mas o mais espetacular para mim, falando em termos de cinema, é a densidade psicológica de César, o macaco. Para sua desgraça, nascido inteligente como humano numa carcaça símia. A alegria e a curiosidade incontrolável típicas da infãncia humana se reproduzem nele, conquistando no ato sua família humana adotiva e toda a audiência na plateia do cinema. A cena onde César é levado para um passeio na floresta de sequóias, seu encantamento e veneração ao ter seu primeiro contato com a Natureza, é absolutamente comovente. Algo superior, transcendente, toca o pequeno César naquele momento, e ele nos carrega consigo em sua euforia incontida, quando salta de galho em galho pela floresta, em júbilo absoluto.

A perda da pureza infantil do protagonista, sua "expulsão do paraíso", ocorre no momento em que, num arroubo de emoção, foge da casa para defender seu "avô humano", John Lithgow dando mais um show numa assombrosa crise de Alzheimer. Como uma criança que não conhece a força contida em seu corpo selvagem, César acaba gerando terror na comunidade humana que o cerca, e é levado para uma espécie de depósito público para grandes primatas, algo talvez só concebível num país como os EUA. Ali, da forma mais dolorosa, ficam claras duas coisas para o pequeno: primeiro, ele não é humano. Segundo, humanos são cruéis com os animais. O espectador assiste e continua consentindo, enquanto o coração de César se parte. A inocência e a pureza se perdem para sempre, substituídas por um compreensível rancor e uma mágoa profunda. Sai a sensibilidade, e por uma questão de sobrevivência assume as rédeas a razão do macaco, que, vamos recordar, é tão inteligente quanto um ser humano. É o começo de uma revolução épica, planejada em cada detalhe, cuja coerência dignifica o filme até seu final.

Na medida em que César cresce e desenvolve seu intelecto, você observa como paulatinamente vai deixando a postura encurvada dos primatas e começa a andar de coluna ereta, sobre os dois pés apenas. Na fase em que se encontra confinado no tal depósito, veem-se algumas das melhores homenagens à série original do cinema. Em dado momento, um dos funcionários assiste pela TV o filme "Agonia e Êxtase", um dos melhores momentos da carreira de Charlton Heston, o Taylor do filme de 1968; pela primeira vez são vistos juntos os gorilas, chimpanzés e orangotangos, e começam a se desenhar os papéis que cada espécie desempenhará na organização social futura; e o mais espetacular, na cena em que César entra em combate físico com Draco Malfoy Felton, este pronuncia a frase: "Tire suas mãos de mim, seu macaco imundo". A resposta é um sonoro "Não!", a primeira palavra pronunciada por um macaco. Se você se lembra, no filme de 1968 a frase dita pelo humano é exatamente a mesma dita pelo astronauta Taylor, revelando sua inteligência aos macacos. E agora, no filme de 2011, a frase leva o macaco a revelar sua inteligência, por primeira vez, à humanidade. Ou seja, a cena é um espelho exato daquela outra, no filme original. Nos filmes dos anos 70s, a palavra "não!" é reconhecida como o símbolo da revolta símia, sendo citada como a primeira palavra dita por um macaco a um humano, e assim a nova saga reverencia uma vez mais a anterior.

Como boa FC, é o caso de perguntarmos agora, num breve exercício de extrapolação especulativa: seria possível que um dia, como no filme, o macaco suplantasse o humano como raça dominante do planeta Terra? Talvez você, num infeliz surto de desconhecimento científico ou apenas querendo polemizar, afirme: "Claro, afinal o homem não descende do macaco?"

E no entanto, passaram-se séculos e séculos, e humanos continuam humanos, e macacos continuam macacos. Não há evidências de que um se converta no outro, permanecendo as duas espécies confinadas em invólucros e realidades distintas. Enquanto evoluimos das florestas e cavernas (vivendo como viviam - e vivem - os macacos) para os edifícios e condomínios contemporâneos, os macacos continuam vivendo como macacos. É como se algo a eles faltasse, a despeito das semelhanças físicas, e fizesse dos símios uma espécie tão diferente dos humanos como os humanos são diferentes das samambaias. É evidente que essa diferença capital extrapola o físico. Talvez você a chame de "alma". Talvez de "espírito". Para ser sincero, já ouvi dizer que essa parte abstrata está alojada na glândula pineal. Ou pode ser algo totalmente diferente disso, e a realidade que nos intriga é apenas circunstancial. Vai saber.

O que me preocupa é que, no livro de Pierre Boulle, lá pelas tantas descobre-se o real motivo da substituição dos humanos pelos macacos. Enquanto os macacos, pela própria natureza, são exímios imitadores, a humanidade, com o tempo, deixou de criar e também começou a imitar. O ser humano deixou de pensar e começou a imitar. E, entre semelhantes, venceu aquele mais habilitado para a função. No caso, o macaco.

Temos Bollywood. E temos Hollywood. E temos as novelas da Globo imitando os filmes estadunidenses. E tenho uma suspeita pessoal de que a cúpula da BHTrans, órgão da prefeitura reponsável pela administração do trânsito de Belo Horizonte, é composta por um bando de chimpanzés treinados. Não sei, é só uma suspeita. Mas vai saber...

domingo, 24 de julho de 2011

Trolls, em poucas palavras...



Você, que acompanha este blog por reconhecer aqui o embrião de um sábio revolucionário que modificará o pensamento da humanidade, ou então que o faz só por caridade, e além disso nada sabe sobre literatura de fantasia ou de mitologia nórdica, provavelmente nunca ouviu falar em "troll". Se já leu "O Senhor dos Anéis", o que o situaria um degrau a mais na direção da nerdice contemporânea, provavelmente relaciona essa palavra às criaturas grotescas que podem ser gigantes violentos ou anões sorrateiros, dependendo da fonte. Mas se, aparte de tudo isso, é um usuário habitual de sites de relacionamento da internet, reconhece o termo aplicado frequentemente àquele chato que surge do nada para avacalhar um assunto ou discussão interessante.

Antes de mais nada, é preciso separar o joio do trigo; o termo "troll" da internet nada tem a ver, em sua origem, com os monstrengos mitológicos, apesar de se assemelhar muito a eles em seu produto final. Surgiu da expressão "trolling for suckers", cunhada em uma antiga rede de grupos de discussão chamada Usenet, que significa algo como "lançando a isca para os trouxas". Porque o que um troll internético faz é exatamente isso, promove discussões, só que normalmente estas descambam para agressões pessoais ou para um entediante duelo de vaidades, tal é o teor que o "mala sem alça" confere aos próprios comentários.

Normalmente um troll se infiltra como um câncer em uma comunidade virtual usando uma identidade falsa, ou "fake". Os motivos que o levam a isso são tão evidentes quanto sua pusilanimidade: uma vez que sua intenção é a pior possível, não trazendo nada de construtivo, o troll teme que sua imagem como pessoa física seja associada a uma conduta tão vergonhosa, por isso se esconde por trás de um disfarce virtual. Esta é a maior prova de que ele sabe que está agindo mal deliberadamente, o que faz dele um covarde de mau caráter. O que o troll não percebe é que, ao contrário de sua identidade, o que está expressando existe de verdade dentro dele; sob o rótulo de "faz de conta" ou de "personagem", o troll vomita no mundo virtual as coisinhas feias e vergonhosas que moram confortavelmente em algum recôndito de sua alma (a verdadeira). Isso porque não há maneira de alguém se eximir da responsabilidade sobre as palavras que pronuncia, seja sob que identidade for. As palavras são como o dinheiro, e o que aumenta ou diminui seu valor real é o uso que o ser faz delas. Uma palavra dita para fazer o bem pode alcançar um valor incalculável na vida de quem a profere ou na dos que a recebem. Palavras desperdiçadas com propósitos rasos e destrutivos podem causar um prejuízo inimaginável para o idiota que as reúne em hostes numerosas e agressivas, sempre que o safado é apanhado. Geralmente palavras mal ditas ("malditas", perceberam?...) jorram em quantidade muito mais numerosa que as palavras de bem, uma prova adicional de seu baixo valor, e causam essa inflação que o troll promove nas discussões gerando cansaço, repúdia e um lamentável desvio de uma conversa que frequentemente estava sendo proveitosa para determinado grupo de pessoas idôneas. Talvez para se justificar perante o próprio espelho, muitas vezes o troll se define como uma espécie de justiceiro solitário, um "zorro virtual" que agita a ordem vigente com o objetivo de enriquecer um debate com novos enfoques. Mas não acredito que, no fundo, mesmo o troll acredite em tamanha imbecilidade. Porque há formas infinitamente mais honestas e éticas de fazer isso sem bancar o imbecil, e a verdade mais provável é que a atitude da trollagem nada mais seja do que uma muda admissão da própria incompetência.

Existe ainda um outro tipinho que pessoalmente classifico como troll, que muitas vezes, diferentemente do espécime clássico, lança seus petardos fazendo uso do próprio nome, de sua identidade verdadeira: é o troll pseudointelectual, que da mesma forma que o outro acaba recebendo o rótulo de asno internético, ainda que em seus devaneios quixotescos se considere a cereja do topo do bolo intelectual, destilando seu veneno disfarçado de "erudição de escola de samba", aquela salada de argumentos salpicada de referências a autores ou obras pouco populares ou até herméticos para o entendimento e a apreciação do grande público. Um argumento comum a esses pobres répteis é o "não li/vi e não gostei". Esses trolls criticam obras sem sequer as conhecerem de fato, muitas vezes fundamentando suas opiniões em alguma resenha ou comentário de outra pessoa, que pelo menos teve a decência de conhecer a tal obra para depois comentar. Normalmente desdenham e desqualificam as pessoas que elogiam tais obras (normalmente filmes ou livros), em nome da "verdadeira arte" ou de uma cultura supostamente mais refinada e acessível a poucos (incluindo eles mesmo, logicamente). Considero esses pobres diabos como trolls porque, como os covardes anônimos do princípio, têm como objetivo principal atrair as atenções para si, e também usam as distâncias físicas existentes entre os debatedores virtuais para falarem em tom prepotente, agressivo, verdadeiros valentões cheios de certezas e convicções inabaláveis, um tom que costuma desaparecer magicamente quando são confrontados por um intrerlecutor cujo punho se encontre ao alcance de seu nariz empinado. Ou seja, também são covardes consumados.

A liberdade de expressão proporcionada por essa terra de ninguém chamada internet é o que dá margem a que, de dentro das aparências e máscaras socialmente expostas, surjam esses bárbaros da intelectualidade, que parecem não se importar (e muitas vezes não enxergam mesmo) em se revelarem como seres patéticos, ridículos, rizíveis, infelizmente condenados, a maioria deles, a morrerem afogados na própria soberba achando que estão cobertos de razão e deixando um legado valioso para a humanidade.

O melhor remédio contra tais bacilos já é bem conhecido e divulgado nas redes sociais: "não alimente os trolls". Contemple-os dentro de suas pequenas jaulas douradas, e se por acaso estiver com tempo ou absolutamente entediado, pode até dar-lhes uma cutucada, virando o feitiço contra o feiticeiro, divertindo-se com eles por um tempo, caçando-os como as zebras (jumentos de pijama por trás de um teclado) que são. Mas cuidado para não perder seu enfoque e se deixar rebaixar ao nível de um troll. Acredite, por menos que tenha a acrescentar a uma discussão, por ser justo e ético você já é infinitamente melhor que eles.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Hormônios em Fúria!





Esta postagem inaugura, como prometido, a temporada de resenhas de livros neste blog. Começamos com "Os Herdeiros dos Titãs", romance de fantasia medieval escrito por Eric Musashi.


Antes de entrar em cheio no tema, porém, permitam-me uma breve digressão para que se compreenda meu "estado de espírito" durante toda a leitura desse livro. Eu era um adolescente quando comecei a escrever meu primeiro romance, e era de fantasia medieval. No momento de iniciar esta resenha, dei-me conta de que nem me lembro mais do título, mas era uma história passada num país-continente que inventei chamado "Gardja". Um jovem presencia a tentativa malograda de assassinato de uma alta autoridade religiosa, e sendo erroneamente incriminado é obrigado a fugir de sua pacata vila. Ao mesmo tempo, forças malignas há muito tempo adormecidas dão os primeiros sinais de estarem despertando uma vez mais em diversos pontos do continente. Eu escrevia esse livro (que nunca foi concluído) usando caneta esferográfica, em um caderno de espiral. Sentia culpa por estar escrevendo sobre fantasia medieval num país onde não houve Idade Média, mesmo que meus nomes de lugares e pessoas fossem fictícios e "impessoais" no que se refere a países conhecidos. Escrevia inspirado por minha leitura do único autor de livros de fantasia em que se conseguia por as mãos naquela época, J.R.R.Tolkien (que eu havia lido e pensado : "Isso daria um filme sensacional!" Mal sabia eu...). E comecei a me exasperar porque a viagem inicial de meu protagonista ia se estendendo e se estendendo por intermináveis páginas, e a ação propriamente dita estava longe de começar. Nem cogitei em transformar minha obra numa trilogia, como está tão em moda ultimamente, principalmente no meio dos escritores iniciantes que não têm noção da fria em que estão se metendo com uma ideia assim. Mas o mais bacana de tudo, o que eu mais gostava, era de criar meu mundo ficcional. Desenhei um mapa detalhado, com os nomes das províncias, as cidades, dos rios e principais acidentes geográficos, e criei características para o povo de cada lugar. Inventei as bases de um alfabeto fictício, e as primeiras regras de gramática para usá-lo. Mas como já adiantei, tudo isso se perdeu como lágrimas na chuva(copyright by Roy, Nexus 6).


Lendo "Os Herdeiros dos Titãs", de Eric Musashi, todas essas recordações voltaram embaladas por uma suave e doce nostalgia. O livro relata a saga de um pequeno grupo de personagens, alguns em fuga após uma rebelião desajeitada e um assassinato acidental, outros buscando a reunião de dignatários credenciados a decidir a respeito de uma futura campanha de conquista, em um reino comandado por uma suposta rainha-deusa imortal e suas cinco eminências pardas encapuzadas. É basicamente uma longa viagem dividida em capítulos, sendo que ao final todos os personagens se reúnem para o desfecho dramático.


Duas coisas, logo de cara, você pode perceber a respeito de Eric Musashi, o autor: ele é um escritor jovem, e esse é seu primeiro romance. Isso traz duas consequências, uma boa e outra ruim. A boa é que ambos os fatores estão fadados à resolução, com o passar inexorável do tempo e o aumento da experiência. A ruim é que essa juventude e inexperiência têm efeitos impactantes no livro, sendo responsáveis por basicamente todas as suas deficiências, que analiso em primeiro lugar.


Um "macete" que aprendi com os editores, em termos de obras longas como um romance, é que você tem que fisgar os leitores nas primeiras trinta páginas, ou uma boa parte deles abandonará o livro. Isso fica difícil em "Os Herdeiros...", uma vez que nas primeiras quarenta páginas o leitor, que ainda não passou por uma etapa fundamental da leitura (saber quem é o protagonista!), passa por nada menos que três saltos cronológicos diferentes, para o passado e para o futuro, o que nessa etapa da leitura gera confusão. Uma delas, pelo menos (o primeiro encontro entre Téoder e sua amada Faná), poderia ser deslocada para mais adiante, na forma de uma reminiscência. Isso inclusive intensificaria o efeito dramático do sofrimento de Téoder, uma vez que muito precocemente somos informados de que a jovem foi morta por suas próprias mãos.


Além disso, Musashi parece ansioso em explicar desde logo as particularidades do mundo que criou, e as páginas iniciais estão abarrotadas de notas explicativas sobre calendário, pontos cardeais, contagem de tempo e distâncias, etc., que quebram o ritmo da ação e poderiam perfeitamente ser inseridos com mais suavidade ao longo da trama. A propósito, em minha opinião nem seria necessário inventar novos critérios para distância e contagem de tempo, por exemplo, pois isso pode confundir desnecessariamente o leitor e nada influencia na trama principal. Essas notas explicativas seguem abundantes por toda a obra, incluindo dados sobre história, mitologia, geografia e costumes locais, de uma forma que muitas vezes continuam quebrando o ritmo. Nesse ponto até compreendo Musashi, pois como disse na minha reminiscência inicial, essa tentação é praticamente irresistível; apenas acredito que, com tempo e experiência, esses dados serão acrescentados ao texto de maneira mais suave.


Em termos de enredo, alguns pontos "desajeitados" que em grande parte também podem ser atribuídos à inexperiência do autor: primeiro, a morte precoce de um personagem no momento exato em que começava a se delinear um promissor triângulo amoroso, morte essa que (pelo menos até agora) teve uma importância praticamente irrisória em tudo o que acontece depois. Mas como o final sugere uma continuação da saga, é algo que tem o potencial de ser solucionado. Segundo, Musashi abusa de alguns recursos de linguagem, que apesar de lícitos acabam comprometando a leitura por serem usados à exaustão; por exemplo, a expressão "um tanto..." é usada precendendo algum adjetivo pelo menos três ou quatro vezes por capítulo. Terceiro, ele usa algumas expressões que soam contraditórias quando usadas juntas, e mesmo que sejam possíveis, em termos literários soam estranhas. Por exemplo, corações que batem "descompassados em uníssono", "chuva fraca e copiosa", ou sol combinado com uma "chuva torrencial". Algumas expressões, principalmente nos diálogos, poderiam na norma culta serem substituídos com ganho em qualidade do texto, como "ha-ha-ha" ou "argh".


A narrativa de Musashi é extremamente visual, e isso em alguns pontos desvia o foco do essencial da cena (p.ex.: "a garota (...) estava muito abalada, e nem percebia que os seios balançavam enquanto corria alucinada."). A onisciência do narrador, em alguns momentos, também se perde de forma desnecessária (p.ex.: "...gritou Arion, depois de atacar Nagos com uma espada de telapuro apanhada não se sabe onde."). Ele também faz uso, vez ou outra, de expressões pouco literárias como "nos conformes", "dar uma bronca" ou "atemorizada como bicho do mato". Entenda-se, tais expressões estariam melhor encaixadas em textos mais descontraídos, mas numa saga de fantasia medieval acabam funcionando como uma pedra no feijão. O mesmo acontece (com maior repercussão ainda) nas falas de alguns personagens, como quando a rainha-deusa protesta porque as pessoas vieram "fazer bagunça no meu castelo".


Alguns trechos acabaram me divertindo muito pelo humor involuntário que evocam. Por exemplo: "Sua barba estava feita, e ele tinha tomado banho recentemente, talvez neste mesmo dia, pois cheirava bem." Ou nesta explicação, após a descrição do ambiente altamente promíscuo e libertino vigente numa festa em Catebete: "Com tanto incentivo à cópula - como à bebida e ao banquete -, o uso de métodos contraceptivos, e as constantes baixas na invasão das Planícies Proibidas, uma vez que não havia guerras externas, eram o que protegia os atalais de problemas de superpopulação." Ou quando o jovem Arion, observando sua outrora amiguinha de infância Ariádan entrando nua nas águas de um rio, começa a perceber as novas curvas de seu corpo de mulher e imagina seus beijos... enquanto chupa uma laranja.


Isso me remete a uma característica muito peculiar e curiosa de "Os Herdeiros...": a maioria absoluta dos principais personagens, com a exceção provavelmente única de Téoder, dos Encapuzados e da rainha-deusa Quetabel, está na faixa etária entre vinte e trinta anos. No entanto, seu comportamento às vezes sugere uma idade ainda menor, com ações e reações típicas da fase adolescente, quando os hormônios se encontram em ebulição máxima! A própria Quetabel, uma mulher de mais de setecentos anos de idade, tem reações espantosamente juvenis, como quando Téoder se esquece de seu aniversário, ou em suas explosões de ciúmes diante das mais irrisórias insinuações. É curioso como nos três casos de relacionamento sexual mais explícito (Arion & Ariádan, Téoder & Quetabel, Luredás & Neara), as mulheres são deliciosamente atiradas, enquanto os homens são desesperadoramente travados, cada qual com seu motivo: Arion por sua confusão de sentimentos por Ariádan, Téoder por sua culpa, Luredás por estar se envolvendo com a esposa de um amigo); é sintomático que as três acabem "pagando o pato" por esse assanhamento, sendo deixadas para trás logo após o ato. Outra característica altamente testosterônica, vigente principalmente entre os personagens masculinos, é uma introspecção mal-humorada que sublinha praticamente todos os diálogos. Todo mundo parece ter algo a esconder, e uma relutância permanente em dar informações cria uma tensão à flor da pele. A rudeza mútua permeia as conversas, e o tempo todo são dadas "más respostas", de forma que os personagens estão constantemente pedindo desculpas uns aos outros por suas palavras. No entanto, quando se decidem a revelar o que econdem, a maioria deles acaba até mesmo se excedendo nas informações, antes de retornar rapidamente à atitude reservada de antes. A óbvia metáfora da espada como arma dos guerreiros, com todas as suas peculiaridades e virtudes, é uma constante ao longo da trama (curiosamente, a arma da única mulher explicitamente guerreira é uma lança). Mesmo quando Musashi toma o cuidado de tentar afastar a conotação sexual de um acontecimento, ele inadvertidamente acaba atraindo a atenção do leitor exatamente para esse aspecto ("Arion foi correndo, e com um salto montou em Valente. Agarrou-se na cintura de Halá, mas sem malícia."). Mais adiante, o interesse nascente entre Ádiler e Helá também evolui rapidamente para temperaturas bastante sensuais.


Tudo isso dá um tempero especial à história, tornando-a mais divertida, mas existem alguns problemas que considero imperdoáveis. O primeiro, e quanto a isso sou chato mesmo, é que uma revisão um pouco mais cuidadosa evitaria erros de edição graves, inclusive no uso da crase. Também no caso de Nábia e Ostes, as únicas personagens que curiosamente falam em segunda pessoa, observei que em pelo menos um momento ambas "escorregam" na conjugação. Na página 109, uma cena sensual entre Luredás e Neara salta bruscamente e sem aviso para uma cena sensual entre Arion e Ariádan. Precisei voltar atrás e reler, pois me pareceu que havia perdido uma parte do texto. Em termos de enredo, a desidratação de Ariádan na primeira parte da viagem me pareceu absurdamente acelerada, inclusive porque tudo sugere que os personagens acompanhavam o curso de um rio. Também me soou estranho que, num mundo que apesar de medieval parece haver todo um cuidado com questões éticas e morais (obviamente adequadas aos parâmetros locais), seja encarado com naturalidade pela maioria das pessoas um sacrifício humano e uma cena de necrofagia realizados em público e em plena luz do dia. Algo que me pareceu uma anacronia foi a definição de uma personagem como "enfermeira", sendo que em nosso mundo esse termo só começa a ser usado a partir do século XIX, depois de Florence Nightingale. E mais ao final, um personagem retira um arco de dentro da própria roupa (!), que precisa ter tamanho suficiente para lançar uma flecha e atingir outro personagem que tenta fugir a galope.


Mas como eu disse no princípio, a grande maioria dos problemas e deslizes podem ser solucionados com o simples amadurecimento de Eric Musashi, em idade e como escritor. Uma coisa é certa: "Os Herdeiros dos Titãs" proporciona uma leitura agradável e muito divertida. O público juvenil, sobretudo, apreciará demais essa leitura. A complexidade do mundo criado pelo autor é impressionante, e percebe-se nas entrelinhas um amplo trabalho de pesquisa, principalmente nos aspectos mitológicos. Ao final do livro a maior parte das principais questões fica solucionada, mas restam os inevitáveis ganchos para pelo menos uma continuação. Faz-se necessário, por exemplo, um retorno às personagens deixadas para trás, e a campanha de conquista que se descortina pela frente. O mistério por trás da rainha-deusa e seus Encapuzados permanece, embora (salvo engano) o livro já deixe pistas significativas para o que está por trás desses personagens.


Uma coisa é inegável: ao contrário do meu pobre mundo de Gardja, Eric Musashi conseguiu piublicar seus "Herdeiros..." numa bela edição de linda capa e elevada qualidade gráfica. O que virá a seguir depende quase somente de sua perseverança, e no pouco contato (virtual) que tive com o autor, me parece que perseverança é o que lhe sobra. Por isso acredito que este livro é algo de que ele deve se orgulhar muito, e minha aposta é de que, no futuro, esses motivos de orgulho seráo ainda maiores.


domingo, 19 de junho de 2011

O Preto, o Branco, o Cinza e os Genes

Aviso: contém spoilers!




Nos anos 60, o genial Stan Lee (et cols.) dava uma nova roupagem àquela que Isaac Asimov já havia chamado de "Síndrome de Frankenstein", ou o medo daquilo que é diferente de nós, transferindo essa situação para o coletivo da sociedade quando criou os "fabulosos X-Men". Os jovens mutantes, que "juraram proteger aqueles que os temem e odeiam" (aka NÓS, os humanos!), exibiam através desse subtítulo-slogan a nobreza e o desprendimento que os credenciavam a se chamarem de "herois". Na virada do século, nunca a metáfora de Lee foi tão verdadeira e contemporânea, no momento em que nos defrontamos, em todo o mundo, com as guerras étnicas e religiosas, e com o ódio e a violência decorrentes da discriminação racial e/ou sexual.




O filme "X-Men: First Class", agora num cinema perto de você, costura ideias já divulgadas nos quadrinhos com pequenas inovações no cânone, para relatar a origem do grupo underground de mutantes, tendo como pano de fundo o conhecimento mútuo, a amizade e finalmente o rompimento dos dois maiores mentores da raça: o Professor Charles Xavier e Eric Lensherr, o Magneto.




Antes de assistir o filme, possivelmente devido à atualidade do tema (embora a trama ocorra nos anos 60), ouvi mais de um comentário no sentido de que este era o "melhor filme dos X-Men". Com efeito, a caracterização e evolução dos personagens é consistente, divertida e, acima de tudo, respeitosa para aqueles que já eram fãs das histórias em quadrinhos. A trama se revela inteligente, na medida em que aproveita um fato histórico real, a Crise dos Mísseis Cubanos que, na década de 60, quase atirou o mundo numa Terceira Guerra Mundial, inserindo os mutantes da ficção como personagens coadjuvantes do drama e protagonistas do fim da crise. Usa, inclusive, imagens reais e discursos verdadeiros do presidente John F. Kennedy veiculados pela mídia da época. Para os fãs, um bonus impagável é a participação especialíssima de Wolverine no filme, interpretado pelo ator que já se uniu indissoluvelmente à sua imagem, Hugh Jackman.




No entanto, um comentário em particular de um colega, antes que eu visse o filme, me chamou a atenção a ponto de eu dar um foco especial ao aspecto abordado. Ele disse: "Cara, eu comecei até a torcer pelo Magneto...(pausa)... se bem que ele fez umas coisas muito erradas."




Se você prestar bem atenção, vai notar que "X-Men: First Class" retrata a transição entre a ingenuidade dos anos 60 e a complexidade dos julgamentos dos dias atuais. No início você tem uma ideia clara, claríssima, de quem são os mocinhos e de quem são os vilões: nazistas X judeus, americanos X russos, mutantes maus X mutantes bons. Tudo preto no branco. No meio disso cresce a figura de Eric Lensherr (futuro Magneto), vítima do Holocausto que vê sua glória pessoal emergir do horror, e transita pela linha escorregadia entre o certo e o errado movido pela dor e pelo ódio. Sua lenta e sofrida redenção ocorrerá pelas mãos generosas do amigo Charles Xavier, que primeiro salva sua vida e depois dá mostras de que salvará sua alma. No final do filme, porém, quando se afasta a ameaça do inimigo mais óbvio, o espectador percebe, estupefacto, que não existe mais preto nem branco. Tudo são, na verdade, tons de cinza. No momento em que Magneto finalmente toma a decisão a respeito de seu caminho, até mesmo o nêmese Xavier é obrigado a admitir que ele tem razão em seus argumentos. A verdade que surge, quando americanos e russos deixam de ser adversários ideológicos irreconciliáveis para se tornarem uma coisa só, a Humanidade, e quando o governo americano deixa claro que o conceito de aliado ou de adversário é apenas uma questão de conveniência momentânea, é de que há diversas maneiras de se encarar uma realidade e de reagir a ela. Aos jovens mutantes, no momento da cisão definitiva, é inclusive permitido o uso do livre arbítrio: ouvir as argumentações de cada facção e escolher o caminho a ser seguido.




Essa ambiguidade quanto ao certo e ao errado já existe no mundo das histórias em quadrinhos de super-herois já faz algum tempo. O entendimento de que o certo e o errado existem dentro de cada um, e de que cada ser está permanentemente tentado a seguir por um caminho ou por outro dependendo dos estímulos a que seja mais suscetível, é o que elevou às alturas a popularidade dos chamados "anti-herois", ou herois de moralidade ambígua, como é o caso do Justiceiro e de Wolverine (Marvel), do Lobo (DC) e de John Constantine (Vertigo), por exemplo.




O mal, na Criação, é relativo. Sua existência se explica na medida em que na Natureza as coisas se definem a partir dos opostos: a escuridão é a ausência de luz, a doença é a ausência de saúde, a morte é a ausência de vida, e estamos todos os dias nos defrontando com essas realidades em variáveis tons de cinza. Citando outra clássica (e espetacular) obra dos quadrinhos da linha Vertigo, Sandman, recordo-me de uma historia onde a Morte (uma linda mocinha dark, irmã mais nova do Sonho), é interrogada por um outro personagem a respeito do sentido de sua (a dela) existência. A Morte responde: "Como você iria saber o que é um dia bom, se nunca tivesse tido um dia ruim?"




Citei esse exemplo e tratei de forma mais ampla dessas questões no meu primeiro romance publicado, Quintessência, que você certamente já leu.




Mas no momento atual, ao assistirmos "X-Men: First Class", nos salta aos olhos o seguinte fato: quando Magneto faz pararem no ar os diversos mísseis lançados pelas duas esquadras humanas, como uma Espada de Dâmocles da era atômica, e os lança de volta contra os navios que esperam impotentes como "sitting ducks", no melhor uso possível da expressão original em inglês, você, espectador, se pega torcendo por Magneto! Mas como pode ser? Você, humano (até prova em contrário), torcendo contra a Humanidade e a favor dos mutantes?! O que acontece de verdade é que você, diante dos fatos expostos, não está torcendo pelos mutantes; está torcendo pela justiça. Numa questão de minutos sua observação recolheu os elementos de juízo oferecidos, entendeu, analisou, e sua razão emitiu o veredito. Assim você tomou o partido dos "filhos do átomo". E no mundo real da luz, das sombras e dos tons de cinza, acontece igual.




No momento de tomar partido entre o grupo de Xavier e o de Magneto, o problema se repete de forma mais sutil: diante dos fatos, qual plano de ação futura é o melhor? A violência e a intolerância presentes nas entrelinhas do discurso de Lensherr nos parecem perigosas; porém, a ideia de bondade cristã de Xavier, dar a outra face a quem nos estapeia, já nos parece fora de moda e inoperante.




Em conferência pronunciada no mês de maio de 1940 (portanto, durante a Segunda Guerra Mundial), o humanista argentino Carlos Bernardo González Pecotche disse o seguinte:




"Esta tragédia que estamos presenciando nos mostra, também, o que podem fazer as legiões dos maus pensamentos, quando estão unidos, se as forças do bem, mesmo sendo mil vezes superiores, estiverem desunidas. E eis, então, como se cimentou na mente dos homens um falso conceito: o de que basta ser simples e bom no significado comum da palavra, e que esse pensamento de bondade seja pacífico e suave em todos os aspectos que ela apresenta. Se os homens são conscientes de que possuem, por exemplo, valores mentais como os que acabo de citar, eles precisam saber que, para conservá-los diante do mal, devem ao mesmo tempo contar com pensamentos enérgicos, dotados da energia necessária para que possam construir uma completa defesa para si mesmos e um auxílio para as mentes de seus semelhantes."




Para solucionar satisfatoriamente a questão, portanto, seria o caso de ter bem claro: quais seriam esses "valores mentais" que merecem ser conservados e defendidos? E o mais importante: como "ser consciente" de que se os possui? Afinal, como bem destacou Magneto, e de acordo com a jurisprudência criada pelo Tribunal de Nuremberg, o argumento de que "eu só estava seguindo ordens" não é apenas inválido, mas perigoso. No nosso dia a dia, a cada atitude tomada ou juízo emitido, seria o caso de se perguntar: ordens de quem?




Mas isso é tema para outro filme...

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Exorcizando um comichão...




Sabe aquele comichãozinho indefinido que fica te incomodando o tempo todo, meio no consciente, meio no subconsciente, sem que você lhe dê a devida atenção, e assim ele não passa? Quase uma macacoa? Pois eu estava com um desses, e decidi encará-lo de frente. Tem a ver com o tal "politicamente correto".


Lembro-me de quando li sobre isso em algum lugar, já faz alguns anos. Uma matéria sobre essa nova moda, surgida (que surpresa!) nos EUA. Na época achei meio cômica, essa ideia de mudar o nome das coisas para, de algum modo, atenuar o conteúdo que elas continuam tendo. Outras pessoas com quem comentei também acharam engraçado, como se fosse um criacionismo, ou uma cientologia da vida. Acontece que, nesse mundo que assumiu o tamanho de um "quarteirão global", a coisa cresceu e se espalhou. Pior: foi assumida como cool pela intelectualidade de vários países, incluindo o Brasil, fazendo jus a seu status de nação em desenvolvimento. Foi assim que a coisa pegou por estas bandas. É, mes amis, a coisa ficou afrodescendente...


O "politicamente correto" é uma forma politicamente correta de censura. Obviamente, seus principais defensores são as vítimas de qualquer forma de discriminação, como os negros, os homossexuais, os deficientes físicos, os idosos. Fazem coro os rincões mais hipócritas da elite intelectual, funcionando como o cimento que sustenta essa ridícula fachada. O que essas "minorias discriminadas" não percebem é que aderir e defender o "politicamente correto" não muda em essência, e não melhora em absolutamente nada sua condição em um nível de profundidade maior que o de um pires. Sim, a discriminação tem que ser frontalmente e exemplarmente combatida, e para isso existem as leis e a regulamentação acessória, que garantem a todo cidadão ser tratado com igualdade e sem agressão verbal, física ou moral por parte de qualquer outro cidadão. Isso sim, é o que vale e o que surte efeito. Agora, convenhamos: chamar negro de afrodescendente não o torna menos preto. Chamar homossexual de homoafetivo não o torna menos gay, nem o velho fica mais jovem quando muda de "terceira idade" para "melhor idade". Mas o pior de tudo é que, além de não alterar em nada a condição do discriminado, a mudança de palavras também não atua em nenhum sentido para atenuar a discriminação, o desprezo, a agressividade ou a atitude preconceituosa do indivíduo que detém essas coisinhas feias guardadas dentro de si. Quem é racista e fala "negro", não fica nem um pouco menos racista quando fala "afrodescendente", o que faz do "politicamente correto" uma forma de hipocrisia, uma maquiagem carregada, superficial e que não contribui em nadica de nada para melhorar a situação das minorias e fazer evoluir nossa condição social. Da mesma forma que a cultura estadunidense costuma ser o supra-sumo do entretenimento, mas não alcança o nível do subcutâneo, voltada exclusivamente para fora do ser humano, os entusiastas do "politicamente correto" querem fazer de nossa cultura sua Hollywood pessoal. O que é necessário, e muito necessário mudar urgentemente, é o conteúdo por trás das palavras, e não sua forma externa. Se na História do Brasil o termo "preto" foi carregado de conteúdo pejorativo, é preciso que primeiro se faça com que as novas gerações percebam esse erro e a enormidade desse absurdo, e a partir daí modifiquem, primeiro dentro de sua razão e de seu sentir, e depois nas suas relações com aqueles que os cercam, o recheio que vai por trás do termo. Porque, como o ser humano, as palavras também têm um corpo (a palavra escrita), uma alma (a palavra falada) e um espírito (o significado da palavra, o conceito que vai por trás dela). Enquanto o "politicamente correto" pretende alterar o corpo e a alma da palavra, maquiando-a como uma velha prostituta (ou eu deveria estar falando "profissonal do sexo"?) carrega nas cores e nas medidas das roupas para vender uma imagem que lhe renda mais clientes e aumente seu faturamento, é preciso atuar na causa, e modificar o espírito das palavras.


Recentemente participei de um vibrante e proveitoso arranca-rabo (e quero usar essa palavra aqui antes que me obriguem a dizer "extirpa-nádegas") em uma comunidade do Orkut a respeito justamente do racismo. Percebi, divertido, como as pessoas preferem negar que a cultura do país evoluiu, de uma mentalidade francamente racista (e socialmente aceita com naturalidade), influenciada pelas ideias eugenistas europeias e registradas para a posteridade nas obras de vários escritores consagrados, para uma cultura com uma visão crítica aguda o suficiente para condenar e elaborar leis que condenam essa atitude. Preferem simplesmente rotular o tal autor como "racista", condená-lo, e não se fala mais nisso. Não se leva em consideração o contexto, e por isso nada, absolutamente nada se aprende.


Falo de autores como Monteiro Lobato (que foi o estopim da discussão), Leopoldo Lugones, José de Alencar, Jorge Amado e até Gilberto Freyre. Sim, o autor de "Casa Grande & Senzala", a obra que é citada por muitos como o marco da virada de uma mentalidade onde a mistura de raças era sinônimo de decadência para a ideia de que essa miscigenação trazia benefícios inquestionáveis, em seus primeiros tempos registrou, como os outros citados e muitos mais, ideias racistas ou discriminatórias em livros, artigos de jornais, declarações pessoais, etc.


Como devemos nos comportar em relação a isso? Se Monteiro Lobato sedimenta seu racismo no romance "O Presidente Negro", então OK, o cara é racista... mas e daí??? O que fazemos com isso no século XXI? É o caso de censurar a obra, banindo-a como (não a) vejo em mais de uma lista de obras do autor em sites da internet? Reescrever as obras, como querem fazer os americanos com Mark Twain? Proibir "Caçadas de Pedrinho" na educação infantil, como pretendem nossos "educadores"? Melhor não seria promover uma leitura dirigida, estimulando as crianças e adolescentes a pensarem por si mesmos, de forma que compreendam o contexto psicológico da época, entendam que nós evoluímos desde ali, e que manter aquela postura retrógrada hoje em dia é muito, muito ruim? Não há mais benefício nisso do que em varrer nossos podres para debaixo do tapete psicológico?


Minha esperança é que chegará o dia em que, da mesma forma como hoje torcemos o nariz e abanamos a cabeça diante das ideias eugenistas europeias que consideravam a mistura das raças um sinal da degradação de um país, um dia alguém vai olhar para trás e agir da mesma maneira em relação à época em que as pessoas levavam a sério esse negócio de "politicamente correto". Se não, pode chegar o dia em que nossa hipocrisia cresça tanto e extravaze pelos poros, e contamine o ar que respiramos, e ninguém vai nem ligar se um desses políticos highlanders, que só desaparecem do cenário se tiverem literalmente a cabeça cortada, chegar ao cúmulo de assumir a presidência do Senado e mandar tirar da galeria de fotos históricas aquelas que fazem referência ao impeachment do Collor. Pode ser que ele diga que aquilo "é um evento menor, que não devia ter acontecido", descendo mais um degrau na fossa imunda do "politicamente correto", e vai ficar por isso mesmo. Vocês duvidam? Pois esperem só pra ver...

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Hoje é o Dia do Orgulho Nerd!




Taí em cima a foto, para os que gostam de estereótipos. Mesmo porque "estereótipo" é uma palavra bem nerd. Bem, para você que não conhece sobre o assunto nada além dessa imagem, é preciso saber que ser nerd costuma ser congênito; grande parte dos nerds que eu conheço, a maioria, na verdade, nasceu nerd. Daquele que, quando era adolescente e tomava uma esnobada da menina mais bonita da escola, suspirava aos céus, indagando: "por que nasci assim?" Mas nerdice também é contagiosa; conheço alguns nerds que se tornaram nerds depois de crescidos, geralmente por influência massiva ou insidiosa de algum nerd nato. Poucas coisas fazem um nerd mais feliz do que converter algum amigo ao seu calvário. Afinal, ele vive sitiado num universo todo dominado pela caretice, mesmice e falta absoluta de criatividade e imaginação. Peraí, eu disse "todo"? Não! Um pequeno universo nerd resiste bravamente ao domínio invasor!


Esse pequeno universo, seja pela proliferação de novíssimos nerds na medida em que seus pais conseguem se reproduzir em cativeiro, seja pela ação de nossa secretíssima e jamais mencionável jihad, se encontra em franca expansão. Especula-se que os primeiros perfis nerds começaram a se desenhar por volta dos anos 50, encontrando terreno fértil no boom de revistas pulp e de filmes de ficção científica ocorridos nos Estados Unidos. Nas décadas seguintes, o contraste entre essas curiosas criaturas e seus nêmesis bad boys e quarterbacks ficou cada vez mais evidente no cinema camp da América do Norte. Desde então os perfis nerds foram se multiplicando e diversificando, e a globalização permitiu sua adaptação progressiva às mais diversas culturas do mundo.


Hoje, a foto estereotípica que inicia este post, pelo menos aqui no Brasil, não define mais o padrão nerd típico. Ela está para o mundo nerd como a space opera está para a ficção científica em geral, se é que você, nerd, me entende: talvez seja a mais popular, a mais pitoresca e mais divulgada nos meios não-nerd, porém não corresponde necessariamente ao que significa ser nerd. Talvez, dentro das ramificações e mutações sofridas pelo gênero ao longo dos anos, esteja melhor definida pelo termo "geek". E geek é nerd, mas nerd não é necessariamente geek. É muito mais!


Como já deixei escapar em um ou outro ato falho no texto acima, sim, eu sou nerd. Com muito orgulho! Do tipo puro sangue, de nascença. Quando cheguei à adolescência, fase em que os hormônios em ebulição começam a dificultar a vida do nerd, o filme que eu mais havia assistido na vida (e meu preferido) se chamava "O Dia em Que a Terra Parou" (a versão inicial, não aquilo que o Keanu fez). Meu heroi incontestável e insuperável se chamava James Kirk, e cruzava a galáxia (não "as galáxias", seu não-nerd burro!) ao lado de seu amigo nerd de outro planeta, que se você quiser irritar profundamente um nerd deve chamar de "Doutor" Spock. Eu colecionei o álbum de figurinhas da Nescau sobre a conquista da Lua, e tinha um foguete que subia a uns dez metros de altura impulsionado por um jato d´água. Mas, diferentemente do que costuma acontecer com os geeks, tive o cuidado de não me alienar: tive amigos, a maioria (obviamente) não-nerds, namorei com não-nerds, e acabei casando com uma não-nerd compreensiva (porque de besta não tenho nada). Investi no estudo (coisa que nerd costuma fazer bem) e em uma profissão que me permitisse ganhar a vida, e ainda ter tempo para coisas que eu considero importantes: viver fora da profissão, ser humano e ajudar a humanidade, e cultivar meus gostos nerds. Nerds sensatos acabam sendo valorizados por suas qualidades no mundo alienígena que o cerca, geralmente relacionadas a sua inteligência, que nerd costuma ter de sobra. É que nerd é interessado em leitura, lê de tudo, até porta de banheiro público, e sua curiosidade científica não tem limites. Por isso a razão do nerd integrado ao mundo fica afiada, e ele precisa se cuidar para não ser tão polêmico quanto sua natureza incita. Mas costuma ser admirado por seus dotes mentais. Ainda assim, nerd integrado não decuida da parte sensível, e é capaz de ser uma pessoa agradável e querida entre seus pares e não-pares.


Hoje, no dia 25 de maio, é o dia em que, há 34 anos atrás, estreou no mundo a obra canônica de ficção científica nerd Star Wars. Tive o prazer de assistir esse filme em sua estreia nos cinemas brasileiros, em um cine Jacques lotado. Anos depois, um nerd chamado Douglas Adams escreveu a saga mais engraçada do universo nerd, iniciada com "O Guia do Mochileiro das Galáxias". Nesse livro, Adams escreve longamente sobre a importância, onde quer que você esteja no universo, de ter ao seu lado uma toalha. Após sua morte, fãs nerds decidiram render-lhe uma significativa homenagem, e como isso foi feito pela primeiríssima vez em um 25 de maio, hoje também é o Dia da Toalha. Ou seja, o universo parece conspirar para que essa data ganhasse um status óbvio e merecido: hoje é o Dia do Orgulho Nerd.


Aqui vai minha homenagem e meu sincero abraço a esses abnegados outsiders que bravamente se proliferam pelo mundo, indo onde nenhum grupo simpático de intelectuais jamais esteve, e que a internet tem permitido que se unam e se fortaleçam.


Outro dia, sentado em um bar com amigos, eu contava a um deles (nerd) sobre minha visita à Forbidden Planet, antro nerd de alta qualidade em Londres. Ele imediatamente me provocou: "Qual é o planeta proibido?" E sem pestanejar, eu respondi: "Talos IV!" Meu amigo deu uma das melhores gargalhadas que já vi. É assim, com uma alegria pura, que um nerd saúda a nerdice de outro, porque sabe que essa nerdice é rara, mas muito saudável.


Se você não conhece bem um nerd, precisa. Acho que vai gostar. Comece assistindo "Big Bang Theory", a melhor série nerd de TV da atualidade, e depois vá à prática. Talvez um dia você consiga entender por que odiamos os midi-chlorians. E que Han Solo atirou primeiro. E por que o melhor filme, de acordo com a maioria, é o das baleias. Se não entendeu, pergunte a um nerd.


Vida longa e próspera a você, e a todos eles!

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Vindos de Outra Dimensão

Vocês estavam achando que este é um post sobre ficção científica. Lamento decepcioná-los. Mas não fechem a janela ainda, porque pelo fato de não ser ficção, o assunto é ainda mais interessante!
Outro dia o Flamengo foi eliminado, na Copa do Brasil, pelo modesto time do Ceará. Uma jovem carioca, indignada, postou no Twitter comentários altamente ofensivos à (palavras dela...) "subraça dos bugres nordestinos". Diante da saraivada de protestos, e inclusive de ameaças sérias pela conduta racista, a moça apagou os posts, pediu mil desculpas e prometeu se afastar do Twitter por um tempo, tal era sua vergonha (sic). Disse algo do tipo: "não sei o que deu em mim, não tenho nada contra os nordestinos, falei por causa do Flamengo".
Você vai dizer: "Arrependida uma ova, ela ficou foi com medo das consquências. Se não queria dizer, por que disse?" Pode até ser. Mas suponha que seja verdade. Por exemplo, olhe para sua própria vida. Quantas vezes você não disse palavras a estranhos, ou pior, a seres queridos, que nada tinham a ver com o que você realmente pensa ou sente a respeito deles. Quantas vezes não experimentou a dor do arrependimento sincero por ter dito algo por impulso, que muitas vezes não combina com o que você é ou com o que pensa? É minha vez de perguntar: se não queria dizer, por que disse?
Algo tem que estar por trás disso. Algo que não é a própria vontade (sua porta-voz autorizada), mas que "toma as rédeas" e te faz agir em um rumo - bom ou ruim - que você não endoçou. Um pirata psicológico!
Você certamente conhece uma ou duas boas teorias para explicar isso. Bem, vou te apresentar mais uma. Pense a respeito. Concorde ou discorde. Mas, pelo menos, considere a seriedade da coisa...
Existe uma outra dimensão paralela ao nosso espaço quadridimensional. Nem tão paralela, porque ela interpenetra e influencia poderosamente esse mundo percebido por nossos sentidos físicos. Essa dimensão também tem habitantes. Eles nascem, crescem, se reproduzem e se movimentam completamente independentes de nossa vontade ou percepção. E o mais importante: de seu ambiente natural, que usam para se mover, se alimentar e se reproduzir, faz parte a sua mente! Vamos chamar essas entidades vivas e autônomas de "pensamentos".
Você é capaz de criar pensamentos. Para criar este post, tudo começou com um pensamento: "vou criar um post sobre pensamentos". Daí resolvi colocar o pensamento em prática e dar-lhe vida, assim organizei as ideias e comecei a prática da coisa. O resultado final, que você está lendo, é nada mais que a materialização do pensamento inicial. Mas o objetivo aqui é falar de outra classe de pensamentos: aqueles alheios à própria vontade. Aqueles que saltam de mente em mente, gerando filhos que se juntam muitas vezes, formando um verdadeiro "ambiente mental".
Você está sentado no auditório daquela palestra chata. Tem uma gatinha sentada do seu lado. Você puxa papo, e a conversa rende. Lá pelas tantas, alguém bate palmas. Você não está ouvindo nada da palestra. Você nem imagina (e não dá a mínima) para o que o palestrante falou. No entanto, você... bate palmas! Ele pode estar ofendendo sua mãe, mas você bate palmas! Pensamentos assim se alastram como fogo em capim seco. Não dependem da sua vontade, saltando de mente para mente, para se reproduzirem. O problema é que bater palmas, na maioria das vezes, é algo muito simples e sem maiores consequências...
Há pouco tempo atrás a imprensa noticiou, em BH, um verdadeiro massacre ocorrido no campus de uma universidade contra uma população de gatos vadios. O que mais chocou foi a barbárie: vários animais escalpelados, com a pele arrancada do corpo ou com as cabeças cortadas com tesouras. Passa o tempo, e mais histórias semelhantes pipocam em toda parte. A última foi ontem quando, em alguma cidade que não a minha, alguém colocou veneno num reservatório próximo a um zoo, que as pessoas usavam para alimentar gatos locais. Morreram vários felinos, um cão, e uma tribo oportunista de gambás incautos. Hoje o jornal me acorda com a notícia de que, em um bairro de BH, alguém deu uma garrafa de cachaça para um grupo de oito mendigos. Misturado na cachaça havia "chumbinho" (veneno para ratos). Mais uma vez foi obra de um covarde anônimo, pois é bem sabido que "filho feio não tem pai".
O pensamento de eliminar (sim, ceifar a vida!) de grupos que você desaprova ou que te incomodam não é novo. Hitler chamou-o de "solução final", e esse pensamento rendeu uma prole grande e complexa, gerando uma verdadeira rede de estabelecimentos e logística, objetivando a morte em larga escala, organizada e eficaz, de grupos populacionais.
Alguém protestará e dirá: "Ah, mas gatos não são gente, é muito diferente!" Amigos, o embrião da violência é o mesmo. O desrespeito à vida, e a presunção do direito que se tem de arbitrar sobre sua continuidade ou não, começa com os seres "inferiores", no caso os gatos, e em BH já está crescendo e atingindo os seres humanos considerados mais "inferiores", os mendigos. Para a "raça inferior" é um pulo.
Faz algum tempo que a imprensa praticamente parou de noticiar tentativas (bem sucedidas ou não) de autoextermínio. Perceberam que, noticiado um fato desse e a comoção que dele derivava, alguns outros casos semelhantes se seguiam. Empiricamente, a imprensa percebeu que pensamentos também se transmitem pelas ondas da TV, do rádio e do papel-jornal. Como os virus, se aproveitam oportunisticamente das mentes mais indefesas para se instalarem e causarem estragos.
A menina que chamou os nordestinos de "subraça de bugres", ainda que não pretendesse jamais encarcerá-los num campo de concentração (tenho certeza disso), ouviu comentários assim em algum lugar. Provavelmente em uma situação inócua: a indignação de um amigo em uma mesa de bar, uma revolta contra um flanelinha... Alguém exclamou "maldito paraíba", e na mente suscetível daquela moça plantou-se uma semente. Quando o time do coração sofreu tamanha humilhação, o pensamento viu a oportunidade ideal para ganhar corpo, e foi vomitado no Twitter inadvertidamente. Se houvesse pensado, mesmo que por puro medo das consequências, ela não postaria.
Assassinos de gatos e de mendigos escondem sua identidade porque sabem, ainda que de maneira instintiva, que uma vez cumprido seu objetivo, o pensamento se retira. Sobra seu fantoche, seu instrumento, aquele que deixou que ele se manifestasse. Esse é o que sofre as consequências, sejam quais forem.
Como uma jovem twitteira indignada, você também pode, num momento de inadvertência, ser veículo de um pensamento que tem uma índole completamente oposta a suas convicções. Basta subestimá-lo, e não ter a devida consciência dele.
Transformei essa realidade em alegoria em meu segundo romance, Casas de Vampiro (ESTE sim, é FC!), criando entidades que habitam essa dimensão mental, mas que são capazes de se integrar a seres biológicos para... OK, OK, sem spoiler! Vá lá e leia, poxa!
Fato é que os pensamentos são reais. Estão aí o tempo todo. São tão palpáveis pelas mãos do entendimento como objetos materiais são pelas mãos físicas. Ou pode ser outra a explicação, e isso tudo não tem nada a ver. Você é quem decide.
Porque (aqui vai um segredo) pensamentos podem ser dominados, organizados e usados com grande proveito na própria vida. Mas a conversa já vai longe, nem vou falar disso agora. Fui.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

A Song of Publishers and Writers























Saiba, ó Príncipe, que nos tempos antigos existiu um mundo onde escritores e editores se degladiavam em lados opostos de uma mesma guerra. De um lado, o autor apaixonado, puro fogo intelectual, tratando seu primeiro romance ("o primeiro de uma trilogia"...) como uma mãe coruja trata seu primogênito, aquele que um dia conquistará o mundo com as palavras. Do outro, o editor frio e calculista, sonhando com cifrões, olhando o mundo do alto de sua torre de vidro, sentindo-se o dono do mercado editorial como um Lex Luthor sem Superman.

Pelo menos essa era a imagem que eu tinha. Eu só não, que muitos de nós, aspirantes a atores no mercado editorial, tínhamos. Razões havia para isso. Eram incontáveis, e desesperadoramente comuns, as histórias sobre originais que eram enviados para editoras com a esperança da publicação, e que depois, sabia-se, iam parar em uma babélica pilha de papel por tempo indeterminado. Talvez infinito. O que para o escritor era a obra de uma vida, para o editor era "mais um". Depois de meses de angústia, alguns escritores recebiam a famigerada cartinha da editora: "Parabéns pela qualidade do seu texto, mas infelizmente..." É o equivalente editorial daquele fora que você já levou da colega de colégio, por quem você era perdidamente apaixonado, mas que gostava dos caras mais velhos: "Você é muito legal, e o problema não é com você, sou eu..." Outros não recebiam nem isso. Apenas o amargo silêncio.

Existia, sim, um abismo insuperável entre escritor e editor. Como não havia um diálogo direto, o terreno era fértil para especulações pessimistas e mal-humoradas. Fato inquestionável era que, se você não fosse escritor de pornografia, de revistinha pulp de faroeste e de menininhas, ou um fenômeno literário tipo Paul Rabbit (ainda em sua fase tupiniquim), a chance de publicar um livro no Brasil era mínima ou quase nenhuma. O editor era aquele cara que não queria publicar você. O escritor era aquele cara que devia aproveitar melhor seu tempo procurando um emprego decente.

Quando foi que a coisa mudou? E o quanto mudou realmente? Existe muita especulação em torno disso. Um argumento forte, com o qual concordo, foi a mudança do mercado. Filmes como a saga Star Wars atiçaram o gosto da meninada pelo fantástico, gênero que, para o público juvenil, estava afastado do cinema havia um bom tempo. Aqueles meninos cresceram, e seus filhos herdaram em boa parte o gosto pela ficção depretensiosa, não mais considerada alienante como ainda diziam seus avós mal humorados, escaldados pela Ditadura. Para a nova geração vieram novos filmes, como a saga de Harry Potter, Crepúsculo e Senhor dos Anéis, todas adaptações de obras literárias de sucesso no exterior. Ato contínuo, a atenção de muitos daqueles jovens cinéfilos voltou-se para os livros originais, que viraram best sellers também no Brasil. Estava criada a demanda.

Paralelamente, a internet transformou a aldeia global em um pequeno e apertado condomínio. Você sabia imediatamente o motivo da briga dos vizinhos por trás de paredes finas, e a fofoca se espalhava como a peste. Seus ídolos sagrados, seus desafetos e seus amigos estavam à distância de um clic.

Dessa nova geração, tecnológica, antenada e aficcionada (no caso da literatura de gênero), começam a surgir os novos editores. Aqueles que gostam de ler (porque mesmo nos velhos tempos não posso conceber um editor competente que não gostasse de ler...) e que veem no advento da tecnologia digital uma possibilidade economicamente viável de trabalharem com o que gostam. Esses estão por aí, acessíveis pela internet ou até pessoalmente. Como existem na literatura de gênero (e já são muitos, considerando...), acredito que existam também em outros nichos. Porém especulo se, no meio da literatura fantástica, esse fenômeno não esteja atingindo uma intensidade especial, já que vejo escritores que batalhavam nas fileiras do mainstream flertando com a prosa mais "metafórica".

Alguma coisa, é certo, não mudou: o escritor continua apaixonado. Caliente. Mãe coruja. O editor, embora mais audacioso, continua racional. Frio. Capitalista.

Quer se dar bem no mercado literário? Entenda algo desde já, pequeno sonhador: uma editora é uma empresa. Que visa o lucro. Se seu livro é seu xodozinho, para o editor ele é um produto de mercado. E pasme, isso não está errado! A partir do ponto em que você aceitar isso, a coisa começa a melhorar. Eu tenho aprendido muito em meus singelos embates com os editores. Depois que compreendi que ambos temos um objetivo em comum, fiquei mais razoável. Esse objetivo em comum é o leitor!

Braulio Tavares, um dos gurus de boa parte de nós, jovens escritores (estou falando de tempo de teclado, não de idade...) escreveu em um artigo que: "O leitor é a mãe do escritor, e o crítico é o pai". Perfeito. O que você espera do leitor é que ele, através do seu livro, te coloque no colo, te afague, diga o quanto você é lindo. Você quer sua aprovação e seu afeto. Quanto ao crítico, você até o desdenha, mantém uma distância prudente, mas intimamente o respeita e está, lá no fundo, ansiando por sua aprovação. O editor é o cara capaz, pelo seu conhecimento e postura técnicos, de tornar seu livro autoral palatável e atraente para alcançar isso!

Claro que a falta de paixão dele também é um defeito, que você não tem. Quando o editor não "sente" sua obra, é preciso que você seja eloquente para fazer com que ele, pelo menos, entenda seu ponto de vista. E felizmente, o grande diferencial que a nova realidade do mercado editorial trouxe em relação à Idade das Trevas foi o diálogo.

Tenho percebido que, quando nem meu editor e nem eu também estamos 100% satisfeitos, a coisa chega ao ponto ideal. Significa que você cedeu aos argumentos racionais dele, e ele também cedeu a sua visão onírica.

Fato é que, pensando e agindo dentro dessa linha, percebo que estou me tornando um escritor melhor. Pelo menos é assim que eu vejo.

sábado, 7 de maio de 2011

O Caminho das Pedras [3] - O Resgate









































O complexo e superinstigante relacionamento entre escritor e editor deverá merecer um tópico à parte. No momento, basta dizer que a internet veio demonstrar que, além de médico e louco, também de escritor todo mundo tem um pouco. O surgimento de sites dedicados à publicação de textos originais, na maioria das vezes curtos (crônicas e contos), eliminando as monolíticas dificuldades da publicação envolvendo editoras tradicionais em papel, fez surgir centenas de novos "escritores". Como qualquer produção massiva surgiu muita coisa de má qualidade, mais um monte de coisa razoável e promissora, e alguns novos autores a serem seriamente considerados. Constatava-se a existência de uma nova demanda literária, que desabrochava em uma tela de computador perto de você. E toda demanda acaba criando uma oferta.


A mesma internet, com a tecnologia digital, fez surgir as editoras sob demanda, investindo em tiragens menores, ditadas pela necessidade e pela capacidade de divulgação dos autores. Nessa esteira começam a surgir também as editoras que cobram do autor para publicá-lo. Pelo testemunho de alguns que recorreram a elas, admito que existem algumas que permitem ao autor conservar sua dignidade. Porém, o que mais tenho visto são aquelas que acabam "queimando o filme" do pobre sonhador, abortando o potencial de um futuro escritor com a publicação de material ruim, sem qualquer critério de qualidade; material mal amadurecido, precariamente trabalhado, tendo como critério soberano para publicação a simples troca pelo vil metal. E começam a surgir também, aproveitando inteligentemente a potencial demanda de novos autores, editoras menores com perfil tradicional, publicando em papel tiragens pequenas, porém com um criterioso trabalho de seleção e um franco diálogo com o autor. Garimpando exaustivamente em busca de autores de (bons) romances, produto ainda escasso no meio dessa nova geração, surgem no mercado miríades de coletâneas com as mais diversas propostas, aproveitando essa grande quantidade de autores de textos curtos, e não são poucos, fico feliz em admitir, os novos autores de qualidade ou de enorme potencial que tenho visto surgirem nesses livros.


Naqueles eventos literários a que fiz referência no último post, como o Fantasticon, comecei a travar contato com os responsáveis por essas últimas novas editoras, conhecendo-os e sendo conhecido por eles. Em minha experiência pessoal, tendo sido publicado em papel por quatro editoras diferentes, posso afirmar que sempre fui feliz nesse aspecto. Começaram a surgir em minha caixa postal os convites para participar de antologias fechadas, ou para enviar textos para concorrer à publicação em outras. As imagens contidas no início deste post retratam as capas das coletâneas de que já faço parte até o presente. São textos de ficção científica em alguns de seus subgêneros:




Em Paradigmas 2 (Tarja), meu conto Efeitos Adversos é uma FC que brinca com um dos recursos privativos do escritor, o de induzir a percepção do leitor atrelando-a à de um dos personagens. É um conto curto, que merece ser lido duas vezes seguidas, pois fatalmente isso será feito sob duas perspectivas distintas. Conta o drama de um cientista que começa a experimentar modificações inesperadas em seu próprio corpo, após um acidente envolvendo uma forma de radiação desconhecida.


Em Imaginários 1 (Draco), meu conto se chama Twist in my Sobriety. Totalmente inspirado pela música homônima, cantada por Tanita Tikaram, faz uma reflexão sobre a hiperexposição pessoal, tão em moda através de reality shows ou de comunidades sociais da internet. Retrata o romance entre um homem amargurado e uma cantora de bares noturnos, num mundo que se adapta à presença de uma estranha raça alienígena.


Por um Fio, conto publicado na antologia Steampunk - Histórias de um Passado Extraordinário (Tarja), é minha estreia no gênero steampunk da FC. Traz um duelo em alto mar, de recursos bélicos e de honra, entre dois personagens bastante conhecidos pelos leitores dos grandes autores da ficção científica clássica.


Na antologia Vaporpunk (Draco), de autores brasileiros e portugueses, surge minha primeira noveleta publicada: Os Primeiros Aztecas na Lua. Situa-se no mesmo universo ficcional do conto Por um Fio, que chamei de "Guerra Fria Vitoriana". Ao mesmo tempo steampunk, ficção alternativa e história alternativa (três distintos subgêneros da FC), retrata o embate entre agentes secretos a serviço do Império Britânico e do Império Francês, as duas grandes potências rivais ao final do século XIX, nesse mundo alternativo.


A antologia Assembleia Estelar - Histórias de Ficção Científica Política (Devir), é uma coletânea que traz autores de três países: Brasil, Portugal e EUA. Deste último, figuram três expoentes consagrados da FC contemporânea: Ursula K. Le Guin, Orson Scott Card e Bruce Sterling. Nesse livro tive o prazer de ver publicada minha noveleta O Grande Rio, certamente o texto curto que mais me deu trabalho em termos de pesquisa, mas do qual me orgulho muito. Um agente vindo de um mundo futuro devastado por uma guerra mundial volta no tempo até Dallas, em 1963, com uma missão de crucial importância: assassinar o presidente John Fitzgerald Kennedy.


A primeira imagem, no alto e à esquerda, é a capa da antologia Space Opera (Draco), que será lançada no próximo dia 04/06, na livraria Martins Fontes da Avenida Paulista (SP), às 15h. Minha noveleta se chama Pendão da Esperança, e conta a histórica do dramático primeiro contato entre a humanidade e uma inteligência alienígena, representadas por um monstruoso e mortal artefato e uma nave espacial... brasileira.


Além das antologias citadas, saiu pela editora Tarja meu segundo romance, Casas de Vampiro, do qual pretendo falar futuramente. Em termso de trajetória até aqui, penso que por enquanto seja o bastante. Inté.













































segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Caminho das Pedras [2] - A Missão























Quintessência, meu primeiro romance, serviu como um cartão de apresentação de luxo. Uma impressão de qualidade e o ISBN facilitam as coisas. Além das livrarias de BH, onde não tive dificuldades, de forma geral, para deixar o livro em consignação, vendi o livro em sites de vendas na internet, e também muitos por e-mail. Meu livro circulou de norte a sul do Brasil, desde o Maranhão até o Rio Grande do Sul, e um exemplar foi parar na Holanda. Tempos depois fiquei sabendo que um cara o incluiu em um trabalho acadêmico em Petrolina, e não faço ideia de como esse livro foi parar lá.




Participando do grupo de discussão do CLFC, pela internet, fiquei conhecendo (virtualmente) o que considero a linha de frente do fandom (leia-se "domínio dos fans") da literatura fantástica. Fiz amigos, e no começo participei de umas duas ou três brigas (podem ter sido mais, mas só me recordo daquelas de que me orgulho). Você tem que entender o seguinte: o leitor/escritor de ficção científica, em média, é intelectualmente diferenciado. Quero dizer com isso que geralmente é uma pessoa com uma característica importante: o interesse no conhecimento, seja ele de que ordem for; a curiosidade quanto ao científico, que acaba respingando para todos os lados, sejam acontecimentos da Natureza, sejam realizações humanas. Isso faz dele, muitas vezes, um cara crítico. E seu acúmulo de informação faz dele, muitas vezes também, um cara vaidoso. Ou como se diz, "de ego inflado". Novatos, quando entrei em campo, eram frequentemente tratados com desdém por alguns, com uma espécie de "bullying nerd" que, felizmente, tenho observado com menor frequência nas novas gerações. Assim, a curiosidade que meu livro gerou no fandom foi positiva para minha aceitação. Nas palavras de um amigo (outrora virtual): "Quem é esse cara, de quem ninguém ouviu falar, e que aparece do nada com um romance pronto?"




Comecei a receber as primeiras críticas, na maioria positivas, desse pessoal que aprecia a literatura fantástica, e ser aprovado por seu público-alvo é a primeira grande alegria do escritor.




Passado um tempo, Quintessência começou a sofrer o mal de toda publicação independente: a falta de distribuição. Se você não está na mídia, não vende, e não ter uma distribuidora cuidando disso é um baita problema. Uma matéria publicada na revista Carta Capital pelo crítico e escritor Antonio Luiz M. C. Costa, figura hoje bem atuante no fandom, sobre os novos autores de ficção científica nacional, e que tecia elogios ao meu livro, alavancou uma nova onda de vendas, inclusive para um político paulista, que adquiriu o livro por e-mail, por intermédio de sua secretária.




Enquanto isso, um daqueles novos amigos virtuais me informa que deverá passar uns dias a trabalho em BH, e me convida para um chope. Foi uma noite agradável com o amigo Ivo Heinz, que me atualizou sobre "o lado negro da Força", e me ajudou a causar na minha esposa Luciana uma impressão indelével sobre essa coisa aterrorizante para leigos que se chama "papo de nerd". Entre outras coisas, Ivo me sugeriu que me associasse também à lista de discussões virtuais da Intempol, que é um universo ficcional criado por Octavio Aragão e trata de uma polícia cujos agentes viajam no tempo zelando pela integridade da História, só que é uma polícia bem... brasileira, se você me entende. Aderi à lista, e expandi ainda mais meus contatos com o fandom.




Um belo dia, fui convidado por Denise Reis para participar de um programa de TV para internet sobre ficção científica, que ela produzia no Rio de Janeiro. Aceitei imediatamente, e gravamos o programa. Os convidados do dia éramos eu, o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão e um especialista brasileiro em história alternativa, Gérson Lodi-Ribeiro, vejam só, aquele mesmo que me socorreu por e-mail tempos atrás, e que tive o prazer de finalmente conhecer em pessoa. Aproveitei essa mesma viagem ao Rio para conhecer outros personagens do fandom que já conhecia pela net, como Ana Cristina Rodrigues, Eduardo Torres (atual presidente do CLFC) e Max Mallmann.




É preciso que entendam que esses contatos pessoais eram fundamentais para mim, por uma simples razão: estar produzindo e lendo FC em Belo Horizonte causa uma solidão absurda na pobre alma humana. Todos os eventos e acontecimentos relevantes da literatura fantástica nacional aconteciam, naquele tempo, em 99% das vezes no Rio ou em São Paulo. Estar com essas pessoas era estar junto a uma lareira acesa em uma noite gelada. Num mundo onde esse tipo de literatura ainda é visto com muito preconceito (e preconceito, regra geral, surge do desconhecimento), o contato direto com seus pares é uma fonte valiosa de estímulos, inclusive para escrever.




Essa experiência me animou a participar também do Fantasticon, organizado por Silvio Alexandre, ainda hoje o principal evento nacional relacionado a literatura fantástica, e que acontece anualmente em São Paulo. O primeiro de que participei dividia seu espaço físico com um evento grande de RPG, repleto de cosplays, e era engraçadíssimo sair de uma mesa redonda onde houvera uma densa discussão sobre literatura e cair em no meio de uma luta de espadas entre elfos e bárbaros celtas, ou ser rendido para uma revista por uma patrulha de Stormtroopers de Star Wars. Participei de todos desde então. O evento logo se transferiu para a biblioteca Viriato Correa (SP), onde ocorrerá de 12 a 14/8 deste ano.




Enquanto tudo isso acontecia, sem que qualquer escritor delirante de ficção futurista fosse capaz de prever, o mercado nacional de literatura fantástica começava a melhorar, e novas editoras começaram a surgir dispostas a investir nesse filão, editoras com presença constante nos eventos de literatura fantástica. Mas isso é tema para um próximo episódio.