domingo, 8 de dezembro de 2013

O horror! O horror!


     Desde que escrevi “Casas de Vampiro”, uma dúvida surgiu e persistiu em algum canto da minha mente; vez ou outra, lendo algum texto, ela retornava, circulava e se recolhia frustrada, sem uma resposta satisfatória. Penso que talvez alguns autores/leitores padeçam da mesma inquietação: qual a diferença entre “horror” e “terror”? Afinal, essa diferença existe?

     Eis que, num dia feliz, deparo na prateleira da livraria com “A Causa Secreta e Outros Contos de Horror” [2013 – Companhia das Letras, 145 pg]. Livrinho bonito, bem editado, e uma olhada na orelha já garantiu sua compra. Na lista de autores das histórias curtas, apenas mestres, escolhidos a dedo!
 

     O brinde inesperado veio na apresentação da obra, logo no início, quando o autor do texto incluiu uma definição absolutamente “matadora” da escritora gótica Ann Radcliffe, acerca da questão que me atormentava como o abutre de Prometeu: “o terror e o horror possuem características tão claramente opostas que um dilata a alma e suscita uma atividade intensa de todas as nossas faculdades, enquanto o outro as contrai, congela-as e de alguma maneira as aniquila. Nem Shakespeare nem Milton em suas ficções, nem Mr. Burke em suas reflexões, buscaram no horror puro uma das fontes do sublime. Onde situar, então, essa importante diferença entre terror e horror senão no fato de que este último se faz acompanhar de um sentimento de obscura incerteza em relação ao mal que tanto teme?

     Na minha concepção, como autor, percebi que o que sempre busquei dentro do gênero foi o horror. Uma obra de terror pode (ou não) evocar o horror. Este não exige a presença, no texto, de algum monstro ou entidade sobrenatural, ou de alguma força misteriosa externa que represente ameaça aos personagens. Com estes elementos, muito mais facilmente, se escreve “terror”. A ameaça exógena deflagra no leitor uma versão psicológica da descarga adrenérgica: “to fight or to flight”. Como encontrar um touro bravo no pasto, assim nos ensinava o grande professor Ângelo Machado na escola de medicina. O “horror”, por sua vez, exige mais habilidade. O monstro está, em essência, dentro da mente. Ele precisa ser descrito com atos simbólicos, ou pensamentos bizarros. Ele não morde, não mata, não suga sangue, mas pode levar sua incauta vítima a fazer tudo isso. É preciso ser um bom escritor para escrever uma boa história de horror, e passar essa sensação “aniquiladora” à mente do leitor.

     Após a explicação teórica, o livro em questão nos apresenta exemplos práticos espetaculares do bom Horror, assim mesmo, com maiúscula.

     “A máscara da Morte Rubra” [Edgar Allan Poe] – O príncipe Prospero (supostamente uma “versão” do personagem real que viveu na Espanha, nos anos 1600) reúne um “milheiro” dos nobres e fidalgos locais em uma de suas abadias fortificadas, e ali estes permanecem trancados, alheios e presumivelmente protegidos da “Morte Rubra”, uma praga implacável que aniquila a população da região como moscas, de forma horrenda. Por volta dos seis meses de isolamento, Prospero promove no castelo um voluptuoso baile de máscaras para seus frívolos convidados. Aparte da bizarra decoração dos salões para a festa, um personagem desconhecido, fantasiado de “Morte Rubra”, provoca inquietação entre os presentes.

     “A causa secreta” [Machado de Assis] – Garcia conhece Fortunato, médico casado com Maria Luisa. A psicologia fascinante do doutor o atrai irresistivelmente, e os paradoxos que resultam de suas atitudes o confundem. Garcia torna-se íntimo do casal, e com o tempo começa a se apaixonar pela esposa do amigo. Paralelamente a isso, uma aparente tensão no relacionamento do casal o aflige. Quando a verdade vem à tona, pode ser tarde demais.

     “A selvagem” [Bram Stoker] – Um jovem casal, em visita turística a Nuremberg, acaba conhecendo outro turista, um “cowboy” americano que, numa brincadeira infeliz, mata acidentalmente o filhote de uma gata, que o grupo encontra numa visita às ruínas do Kaiserburg. A fúria e o desespero da felina os deixam chocados, e ela passa a segui-los pelas ruínas, a despeito da pouca importância dada pelo assassino ao episódio. Este pode acabar sendo um erro fatal.

     “A mão” [Guy de Maupassant] – Um misterioso inglês aluga uma propriedade isolada nos ermos da Córsega, despertando para si a curiosidade da população do vilarejo próximo. Um juiz local, sentindo-se responsável por força de seu ofício, decide aproximar-se do forasteiro para saber mais sobre ele. O homem se revela como uma espécie de aventureiro, que tem entre seus diversos troféus de peripécias passadas uma mão mumificada presa por uma corrente. Posteriormente, um acontecimento trágico cria uma linha tênue que separa a imaginação e o sobrenatural.

     “O rapa-carniça” [Robert Louis Stevenson] – Dois homens com um misterioso passado em comum se encontram acidentalmente, anos depois, num pub inglês. Um deles relata sua história, dos tempos de estudante de medicina, quando obter cadáveres para as aulas de anatomia era um sério problema. Seu relato disseca, pouco a pouco, a alma humana, demonstrando como a cobiça e a banalização da morte, associados, podem transformar homens em monstros. Uma história com terríveis ecos contemporâneos.

     “O cirurgião de Gaster Fell” [Arthur Conan Doyle] – Um pequeno elenco se encontra inadvertidamente em um pequeno povoado nos ermos da charneca inglesa: um aventureiro desiludido, uma jovem encantadora dada a passeios noturnos misteriosos, um cirurgião eremita e seu misterioso companheiro. A reunião desses elementos promete trazer à tona uma história assustadora.

     Essas histórias curtas merecem ser lidas, por terem sido escritas, cada uma delas, por um mestre do gênero horror. A despeito dos elementos datados, típicos dos textos do século XIX, que precisam ser levados em conta, das páginas desse livro exalam exemplos eloquentes da sensação de horror que, penso eu, todo escritor contemporâneo que se aventura no gênero deve almejar. Para mim, um dos contos em particular foi altamente inspirador, e deve se traduzir em um conto de minha autoria que, espero, logo se concretizará em palavras escritas. Mas todos eles, sem exceção, representam uma aula extremamente instrutiva sobre o que significa gerar “um sentimento de obscura incerteza em relação ao mal que tanto teme”.

     Altamente recomendado, para quem gosta!

terça-feira, 11 de junho de 2013

Vamos sair da caixinha?


 “…And the boys go into business

And marry and raise a family

In boxes made of ticky tacky(*)

And they all look just the same,

There's a green one and a pink one

And a blue one and a yellow one

And they're all made out of ticky tacky

And they all look just the same.”

(*)Gíria Americana: uniformidade monótona, frequentemente insípida ou medíocre

(Little  Boxes – Malvina Reynolds)

 

     Um amigo, no Facebook, chama a atenção para um link de uma revista virtual, intitulado: “‘Amor à Vida’ é criticada por internautas por não ter nenhum ator negro no elenco”. Clico no link e sou remetido à Revista Afro, “Uma revista online de variedades sobre o universo negro (sic)”. OK.

     O primeiro parágrafo da matéria (com minhas reflexões entre parênteses) diz: “Na internet, um novo viral tem feito a cabeça de internautas (gozado, não vi nada disso). Nas redes sociais (no Facebook ainda não tinha visto até aparecer este link!) e em sites de militância (ah, ok! Bingo!), circulam protestos dizendo que a TV Globo está sendo racista em “Amor à Vida”. Os grupos se dizem discriminados porque há personagens gays na novela, mas no elenco não há nenhum ator negro.”

     Por mais que o artigo me sugira fortemente uma manifestação organizada por um grupo em particular com pretensão de divulgação ampla, ele é o exemplo prático de uma realidade que merece uma maior reflexão.

     Já foi observado, mais de uma vez, como a repetição exaustiva de uma mentira lhe dá ares de verdade; ou como a repetição ad nauseam de um absurdo faz com que pareça normalidade. Isso ocorre em intensidade multiplicada exponencialmente na era da internet e das redes sociais, onde a velocidade de expansão do pensamento no mundo mental/virtual me parece incalculável. Torna-se um problema sério, portanto, quando vivemos à mercê de uma nova egrégora, uma “nuvem de ideias” que interpenetra todos os ambientes e que se caracteriza, nesse caso em particular, com os rótulos de “politicamente correto” e “patrulhamento ideológico”. Como já dissemos num artigo anterior, pretende-se substituir mudanças verdadeiras no pensar e no sentir das pessoas por uma “aparência de mudança”, uma maquiagem hipócrita que não resiste a uma segunda demão de profundidade em nosso modus operandi cultural e social. É coerente, por sinal. Num mundo que cada vez mais prima pela superficialidade e pelo efêmero, uma maquiagenzinha básica em nosso jeitinho de ser pode parecer “boa para o gasto”. Mas será isso o que realmente nos convém?

     Voltando ao exemplo prático que iniciou essas divagações, bradam os defensores da causa que as novelas deveriam traduzir, necessariamente, com precisão, a realidade que vivemos. Algo assim, como um documentário educacional para crianças do curso médio. Novelas como “Saramandaia”, por essa linha de pensamento, nem pensar! Ora, nunca uma novela das nove teve tantos personagens assumidamente gays. Então eles estão lá, felizes, se divertindo diante da telinha e comendo pipoca. Mas peralá! Cadê os negros? Começa aqui a discriminação. Sim, meus amigos, toda pressão em favor de um grupo qualquer, seja ele branco, negro, amarelo ou verde (para que os aliens não me acusem de discriminação por omissão), é discriminatório. Qualquer cota que não siga a meritocracia com igualdade de oportunidades, independente dos fatores históricos até que se invente a máquina do tempo, pois sobre estes não temos domínio, é discriminatória. Um juiz de futebol que deixa de apitar um pênalti legítimo no primeiro tempo não pode “cavar” um pênalti falso depois, a fim de “compensar”. Isso nos parece ético? Parece moralmente aceitável, ainda que venha após uma injustiça verdadeira? Não se gera, aqui, uma nova injustiça? Corrigir erros na base do “olho por olho, dente por dente”, é primitivo. Retrógrado. Se eu estiver falando contra o SEU grupo, é possível que não concorde. Mas se vamos favorecer um grupo de cada vez, quando isso vai parar? Qual o limite que determina a exatidão da compensação devida? Quem o estabelece?

     No caso da novela pretende-se associar, de forma um pouco forçada, a credibilidade a uma suposta “exatidão na ambientação”. O que nos impediria, no primitivismo de nosso século XXI sem sabres de luz ou carros voadores, de nos emocionar verdadeiramente no primeiro momento em que Darth Vader estende a mão e diz: “Luke, I am your father!”

     Como autor, defendo até o fim meu direito criativo em termos de obras de ficção. Mesmo que, nos divertidos anos 70, Hollywood tenha nos brindado com os exageros do “Blaxploitation”, filmes com uma explícita conotação racial pró-negros, que engoliu, em dado momento, o próprio Drácula (Blackula, no caso). Jamais vi uma crítica decente de conotação ideológica a esses filmes, apenas de ordem técnica. Simplesmente porque isso não cabe, da mesma forma que é absurdo tentar impor “cotas” de personagens a nossos autores de filmes, novelas, livros ou qualquer tipo de produto cultural de entretenimento. Então teremos gays, e negros... espere, cadê o oriental? O índio, que daqui a pouco se organiza em ONGs e vem descendo a borduna no cinema nacional? Hipocrisia burra, que tende a diluir de maneira lamentável a qualidade das obras em prol de um patrulhamento ideológico (arrá!) digno da censura dos anos duros.


     Posso falar disso com naturalidade. Lá pelos anos 80s, um de nossos mais competentes vigilantes culturais, Braulio Tavares, cunhou a inspiradíssima expressão “Síndrome do Capitão Barbosa”. Segundo ele, em uma obra de ficção científica no estilo Star Trek soaria ridículo, inverossímil, um comandante chamado “Capitão Barbosa”, o que nos condenaria, pobres autores brasileiros, a copiar os moldes estadunidenses. A verdade é que nós nos sentíamos assim, de fato. EU me sentia. Doente da Síndrome até os ossos. Entretanto, os tempos mudaram. A internet encurtou as distâncias do mundo. Mesclou produtos culturais de forma inédita. Em 2011, senti que tinha me curado da doença. Para provar que isso era possível, escrevi a noveleta “Pendão da Esperança”, que concorreu e conquistou seu lugar na antologia “Space Opera” (Draco). Nessa história, a nave espacial brasileira “Estrada Real” precisa deter uma ameaça alienígena superpoderosa, capaz de aniquilar a própria vida no planeta Terra. Meu protagonista? O Capitão Barbosa. Um brasileiro. Negro.

     “Pendão da Esperança” foi muito elogiada, e no ano passado ganhou o Prêmio Argos de “Melhor História Curta” publicada em 2011. Muitos elogiaram a forma criativa como solucionei o conflito (UFA!). Mas percebi que alguns destacaram como qualidade o fato de Babosa ser negro, ainda que, levantada a dita lebre, outros viessem me perguntar: “Ele era negro? Não percebi isso...”
 

     O fato de Barbosa ser negro em nada influencia a história, quero deixar claro. Não é panfletário. Ele poderia ser branco ou oriental, com o mesmo resultado. ISSO. NÃO. INTERESSA. Barbosa era negro porque nasceu assim, é algo natural, um brasileiro negro. E penso que deveria ser assim, que as obras de ficção pudessem ter sua qualidade avaliada com base em critérios artísticos, jamais ideológicos. A minha foi, graças a Cthulhu (porque, se escrevo “Deus”, será que os ateus me massacram?). Em pleno século XXI, quando as fronteiras físicas e econômicas começam a ruir cada vez mais, nossa cultura parece insistir em navegar contra a corrente da evolução, criando caixinhas que nos separam: caixinhas negras, brancas, idosas, jovens, crentes ou ateias. Deixo para reflexão: nossos conflitos milenares não seriam solucionados com muito maior facilidade se nos dispusermos a, simplesmente, saltar para fora das nossas caixinhas?

 

terça-feira, 12 de março de 2013

Divina Tragédia

(*)

DIVINA TRAGÉDIA

     Estava Deus compenetrado, os olhos fixos no infinito, quando entrou esbaforido o Camerlengo.

     - Deus! Deus! Uma emergência!

     - Fala, Camerlengo... – disse Deus, os dentes trincados e o queixo apoiado na mão, já acostumado aos dramas do funcionário.

     - Duas galáxias estão prestes a se engalfinhar no setor Gama...

     - Estou ocupado, Camerlengo – Deus continuava monotônico, mas, apesar de milênios e milênios de serviço, o outro ainda não aprendera a reconhecer o divino mau humor.

     - Mas, Deus... São trilhões de planetas habitados, cada um com bilhões de habitantes, prestes a desaparecer! O que pode ser mais importante?

     - Está rolando o Conclave, Camerlengo. – Deus suspirou e encarou o servo pela primeira vez, os olhos divinos injetados por milhões de raios cósmicos.

     - Con... quem? – balbuciou o Camerlengo, confuso, olhando estupidamente ao redor.

     - Olha lá... – Deus puxou o outro delicadamente pelo ombro e apontou em direção ao infinito. O Camerlengo estreitou os olhos numa fenda confusa, franziu a testa e esticou o lábio inferior.

     - Presta atenção; tá vendo Andrômeda?

     - Andrômeda... Andrômeda... ah, tá, aquela espiral bonitona lá embaixo...

     - Isso! Agora olha mais à direita, um pouco pra baixo. É a Via Láctea.

     - Via Láctea... – o Camerlengo esticou cada letra eternamente pronunciando o nome, para desespero de Deus. – Desculpe, mas não vi ainda.

     - Olha meio de lado, Camerlengo. Olha para Andrômeda, mas presta atenção no campo periférico, onde ficam os bastonetes da retina. Vai ver uma nebulazinha apagada...

     - Ah, tá! Via Láctea! Agora lembrei. Tá ali, apagadinha. O que tem lá mesmo?

     - O planeta Terra. Lembra, os humanos?...  

     Após eternos segundos de silêncio o Camerlengo deu de ombros, vencido.

     - Desculpe, Deus. Seus desígnios são um mistério para mim.

     Deus ergueu os olhos para...ahn... o espelho, como se pedisse ajuda. Sentou-se diante do criado e começou, em tom professoral:

     - Na galaxiazinha da Via Láctea tem um planetinha chamado Terra. Fica bem na periferia, num braço externo, quase despencando para o espaço profundo. É pequenino, mas simpático. Lá tem uma religião que dominou o mundo por mais de dois mil anos, e agora o líder deles renunciou. A cúpula está reunida para escolher o próximo. Isso se chama Conclave.

     - Ah, estou lembrando... – o Camerlengo estalou os dedos, aliviado. – Não foi esse pessoal que andou espalhando que Você deixou um filho zanzando por lá, um tempo atrás? Um que – teve um caso esquisito - morreu crucificado para redimir os pecados de todos?

     - Sim, a conversa foi essa mesma – Deus voltava a soar contrariado.

     - Na época eu sugeri um exame de DNA...

     - Como assim, Camerlengo? Fui eu quem criou tudo que existe, meu DNA (que, aliás, fui eu quem criou também) está impregnado no menor pedregulho de Alfa-Centauri IV e na maior das bestas-fera do planeta Xandelón! Tudo que existe é filho meu, até você! É claro que ia dar positivo!  

     - Eu não tinha pensado nisso. Então, o chefão lá renunciou...

     - O tal que dizem ser meu filho morreu na cruz. Com que direito aquele alemão desce assim da cruz?... – Deus resmungava, mais para si mesmo. Foi ficando irritado e, em algum lugar, meia dúzia de quasares começaram a brilhar mais forte. Reconhecendo o perigo, o Camerlengo decidiu dar continuidade à conversa.

     - E esse tal “Conclave”... demora?

     - Nem eu sei. Os líderes estão orando pela minha inspiração. Querem de todo jeito que eu dê uma dicazinha. Os velhinhos da cúpula se trancaram hoje na Capela Sistina. Lembra? Aquela que Michelângelo pintou todinha em minha homenagem.

     - Lembro! Teve a polêmica do paredão do Apocalipse...

     - Sim, uma parede inteira para explicar como vou acabar com o mundo. Imagina! Eu, com tanta coisa para me preocupar, acabar com aquele mundinho!...

     - Por mim dava processo...

     - Pensei no assunto, mas decidi relevar, em homenagem ao todo da obra. Ficou bonito, sim.

     - Bem, mas se os caras estão trancados lá dentro, não vai demorar até decidirem alguma coisa, certo?

     - Quem me dera. Olha lá, acaba de sair fumaça preta da chaminé! – Deus suspirou, xingando um palavrão, e lá bem longe uma estrela explodiu e virou uma supernova. – Significa que não chegaram a um consenso. Parece que tem umas quatro facções que não entram em acordo...

     - Mas é muito simples, Deus! Diz logo quem vai ser o novo chefão, e acaba logo com isso!

     - Eu? Como assim, Camerlengo, pirou?! Naquele planetinha tem um monte de grupos, cada um com sua versão de Deus, dizendo que os errados são os outros. Já fizeram – e fazem – guerras fratricidas por causa disso! Você acha que isso me deixa feliz, como pai? Será que não dá para esse povinho entender que sou pai de todo mundo, sem distinção, e não precisa organizar religião por causa disso? Imagina se decido dar um empurrão em um grupinho, e nos outros não! Esse povo explode o planeta!

     O Camerlengo voltou a dar de ombros, as palmas das mãos viradas para cima.

     - Seu nome é que está envolvido, Você é quem sabe.

     - Esse é o problema. MEU nome. Por isso não consigo me desligar, apesar de ter anos-luz de coisas para fazer nesse meu universo. Fazer o quê, sou assim mesmo, responsável. Não se cria um universo sem responsabilidade, Camerlengo.

     - Eu sei, Deus – suspirou o outro. – É o seu calvário. Mas me diga uma coisa: o negócio não pretende ser por “inspiração divina”? Então por que esse segredo todo? Por que os velhinhos não discutem abertamente, revelando para todo mundo suas dúvidas, seus interesses, seus medos, suas esperanças? A melhor forma de se revelarem filhos de Deus não seria assim, revelando-se humanos? Não é o que Você espera deles?

     - Não é difícil de entender, é, Camerlengo? Estou quase te mandando para lá...

     - Você que me livre! Só ia servir para inventarem uma nova religião em volta de mim, excluindo as outras, e logo haveria uma guerra, e depois eu ia acabar dependurado em uma cruz à toa, porque esse seu povinho doido entende tudo errado! Quer saber de uma coisa, Deus? Desculpe a ousadia, mas estou achando que esse planeta Terra deu errado. Ah, vá, é só um planetinha de nada, e esse pessoal obtuso já revelou que te considera capaz de acabar com tudo! Então dê razão a eles! Tem lá uns meteoritos rondando, não tem? Dá uma sopradinha de leve em um, acaba com tudo e começa de novo. Puxa, Deus, você tem a eternidade para recomeçar! Ninguém vai reclamar, eu te garanto...

     Deus suspirou e coçou o queixo, pensativo.

     - Começar de novo?... Camerlengo, sabe aquele armário lá no porão?

     - Sei. O empoeirado.

     - Procura, lá na prateleira do fundo, uns desenhos antigos meus. Vou dar uma estudada.

     - Qual chumaço Você quer? Lá está cheio.

     - Um com a etiqueta “Dinossauros”. Quem sabe...

     O Camerlengo saiu rapidamente.
 
(*) A imagem que ilustra este post é Deus, do genial Carlos Ruas, autor da tirinha "Um Sábado Qualquer"

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Bumbada na Pausa

 
     Muita repercussão, nos últimos dias, teve a charge de autoria do Chico Caruso, publicada em um jornal de grande circulação a respeito da tragédia em Santa Maria (RS), quando mais de duzentos jovens, em sua maioria universitários, morreram no incêndio da Boite Kiss durante uma festa. Não a repercussão que o Chico almejava, com toda certeza. Algumas críticas indignadas e bastante violentas. A charge é essa aí em cima.
     De acordo com o amigo Octavio Aragão, cuja tese de doutorado teve tema ligado às charges, essa forma de expressão cultural nasce do grotesco e bordeja o mau gosto. Teria, como sua principal função (ou uma das principais), incomodar, “mover” o leitor de alguma forma (Octa, favor me corrigir se entendi errado). Sua razão de existir seria a crítica, não necessariamente com humor.
     Na minha percepção, o humor como forma de crítica parece ter nascido com o teatro grego. Enquanto a tragédia grega servia para exaltar a pequenez do ser humano e sua impotência diante da vontade dos deuses, a comédia surgiu como movimento antagonista, de caráter essencialmente popular e usando o humor para escrachar as elites, o governo ,e por que não?, os próprios deuses. O humor, quando usado na charge, me parece ter função idêntica. O mais curioso, entretanto, em relação à charge do Chico, é que sua intenção permanece nebulosa, pelo menos é o que pude apreender acompanhando as discussões nas redes sociais. O que ele pretendia? Fazer uma crítica? Humor? Manifestar pesar ou perplexidade? Para uma forma de arte que se propõe a transmitir uma ideia claramente através de uma única imagem, não me parece muito promissor.
     Algumas teorias a respeito pipocaram na internet. Disseram que seria politicagem do Chico, como sinal de fidelidade a seus mestres antigovernistas. Não sei. Talvez. No entanto, se foi o caso, não me parece ter sido bem sucedido. Não vi na imagem nenhuma ironia ou mesmo crítica sutil contra o governo. Sim, a presidente Dilma esteve em Santa Maria, e, como todo ser humano minimamente dotado, manifestou à sua maneira emoção e perplexidade. O que me parece é que o Chico mostrou exatamente isso, a perplexidade da Dilma de forma caricaturizada. E usou para isso um trocadilho, usando o nome da cidade como forma de exclamação de espanto, diante de uma jaula cheia de gente pegando fogo. Nesse caso, parece que ele tentou, sim, usar um tom de humor. Muito infeliz. Tanto o trocadilho quanto a imagem são de extremo mau gosto, e chocam o leitor. Por quê?
     O ser humano é o único ser vivo sobre a superfície de nosso planetinha dotado de uma capacidade inerente a sua natureza sensível: a de consentir, que também poderia ser definida como “sentir com”. As coisas importantes, significativas, que acontecem com nosso semelhante nos evocam reações sensíveis: coisas boas, reação de alegria ou prazer. Coisas ruins, reação de tristeza. Isso é natural, isso é humano. Eis a razão pela qual qualquer manifestação tendente a diminuir, a fazer pouco da importância desses momentos, soa como desrespeito, e ecoa como desaprovação não apenas no coração daqueles envolvidos diretamente no suposto episódio, mas também em todos que consentiram com eles. Por isso considero uma enorme bobagem uma manifestação que li, bem típica daqueles julgamentos pré-fabricados dos que têm preguiça de pensar e que ouvimos com frequência nas filas de banco ou supermercado: “a comoção foi grande porque eram jovens bonitos e ricos, se fossem pobres e feios ninguém estaria ligando”.
     Desculpem, mas não foi o que me encheu os olhos d’água acompanhando a cobertura da imprensa do episódio em Santa Maria. Como também não foi o que senti em outras tragédias, como mortes em soterramentos, enchentes ou incêndios em favelas. É perfeitamente natural que o grau de comoção seja maior quando aquele que se comove se identifica mais com a pessoa que sofre. Ele se vê na mesma situação, ou vê um filho, ou um amigo. Mas o consentimento com o sofrimento alheio, não tenho dúvidas, transcende questões de raça ou classe social. Tem a ver com nossa situação de irmãos, sem nenhum viés religioso ligado à palavra, irmãos por sermos todos humanos e viventes neste mundo, com as mesmas expectativas, os mesmos sonhos, as mesmas dúvidas. Para os que acreditam, mais uma vez excluindo qualquer sentido religioso, filhos do mesmo Pai.
     Foi esse sentimento generalizado, um dos mais puros dentro do coração humano, que Chico Caruso feriu com sua charge de mau gosto. E nas manifestações de repúdio, muitas, como eu disse, exaltadas, não cabe falar em “censura”. Outra bobagem enorme. Porque a charge nem de longe acarretará qualquer sanção ou limitação da liberdade de expressão do Chico de agora em diante. Só quem perde é seu conceito pessoal, o que é justo e compreensível quando um indivíduo se manifesta com desrespeito diante do sentir de um grupo maior. No caso, maior como a própria humanidade, dadas as manifestações sobre o assunto que saíram em jornais do mundo inteiro. Jô Soares já se referiu a esse tipo de coisa, mais de uma vez, como “bumbada na pausa”. É quando uma banda toca com total harmonia e, na hora da pausa, quando deveria haver silêncio, soa o som indiscreto do bumbo. Todos olham para o “bumbeiro” afoito, que se encolhe de vergonha. A bumbada do Chico Caruso dificilmente poderia ser mais infeliz.
     Se a função da charge é “incomodar”, certamente não o conseguiu da maneira esperada, uma vez que a indignação não se direciona ao acontecimento em si, e dificilmente resultaria em algum movimento de mudança ou contestação, como conseguiu a cobertura da imprensa na TV. O incômodo foi contra o autor, não contra o assunto da charge, e essa mudança de foco, para mim, significa fracasso. Sim, uma charge ruim.
     Já que falei na cobertura feita pela TV, cabe ressaltar que no princípio considerei excessiva, explorando o assunto até a exaustão. Porém, conversando com amigos, eu mesmo acabei mudando de ideia. Num país onde temos o costume de esquecer rapidamente as coisas, perdendo a oportunidade de aprender com a História, talvez a intensidade da cobertura sirva para prolongar, nem que seja um pouco mais, a nossa indignação pela morte sem sentido daqueles jovens em Santa Maria, resultado da mais crua negligência de poderes públicos e privados. Se a conta da tragédia resulta em prejuízo, que este possa ao menos ser amenizado com alguma atitude séria das autoridades que possa evitar a repetição desses fatos inconcebíveis. E não, não vamos esquecer nossas indignações antigas: temos picaretas mensaleiros a prender e salafrários corruptos a investigar. Que nossa indignação coletiva também seja capaz de se unir, num sentimento comum, nosso povo, no sentido de fazer, efetivamente, um país melhor. E, por favor, sem bumbadas.
     Finalmente, respondendo a uma provocação do amigo Octavio Aragão, segue uma charge que considero “de bom gosto”. Une os dois assuntos que abordei aqui.