domingo, 7 de dezembro de 2014

JECKYLL, HYDE E SEU PLANO DE SAÚDE


 
Ser médico não é fácil. Nunca foi. Não estou falando, aqui, dos anos a fio nos bancos de escola, dos plantões massacrantes nem da capacidade magayveriana de improviso, que é necessária para driblar o sucateamento das instalações e recursos da Saúde neste país.

     Hoje estou falando de lidar com a ansiedade do ser humano. Esta existe em qualquer nível de relacionamento médico-paciente. Por um lado, existe esse paradoxo do cliente que não se cansa de repetir que “médico não é Deus”, mas está permanentemente na expectativa de que o seu SEJA um. Mas fica mais claro nos atendimentos de urgência e emergência, onde o sofrimento e a dor do doente atingem seus níveis mais elevados, e até mesmo a calma e o distanciamento do médico, necessários para garantir uma conduta técnica e eficaz, são às vezes interpretados das mais diversas formas: insensibilidade, prepotência, mau humor, etcétera.

     Tomo a liberdade de transcrever aqui exemplos reais – e recentes - do que tem acontecido nos últimos tempos, de acordo com a experiência pessoal de um médico amigo, profissional das áreas de urgência e emergência:

     - “Uma pessoa me parou no meio da rua, solicitando que eu fizesse pedidos de exames para ela. Expliquei que ela tinha de se consultar com alguém, que não se faz isso no meio da rua. Ela achou ruim.”

     - “Três pacientes se atrasaram no consultório (adendo meu: no meu consultório, só hoje, quatro pacientes deram o bolo, faltando sem se justificar ou avisar). Todos reclamam quando o médico atrasa. E quando eles atrasam, o que fazemos? Mandamos para casa?” Experimente tentar não atender, por causa do atraso. AH!

     - “Um paciente de um colega me ligou pedindo encaixe, pois estava passando mal, e estava disposto inclusive a pagar uma consulta particular pelo incômodo. Autorizei, como de costume. Uma mentira deslavada. Ele não tinha nada, e ainda se consultou pelo convênio. Resultado: com o encaixe, acabo chegando atrasado ao plantão.”

    Porque médico tem isso: sai do consultório direto para o plantão noturno, e amanhã cedinho sai do plantão para o consultório. Com o atraso do meu colega por causa do encaixe, é bem possível que tenha encontrado alguém reclamando do atraso no plantão.

    Mas não quero correr o risco de descambar para o “mimimi”. Não é esse o meu objetivo. O que eu disse até agora todo mundo sabe, e cá entre nós, a maioria nem está se lixando. O que me chama atenção é o aumento da atitude agressiva, arrogante, intolerante do paciente em relação ao médico na medida em que o tempo passa. É fácil compreender isso num país onde o próprio governo federal promove uma campanha explícita de demonização da classe médica, jogando a população contra ela, como bode expiatório para o caos em que mergulhou a Saúde por óbvias razões de falta de investimento, desvio de verbas e corrupção desse mesmo governo. Recentemente, uma campanha veiculada pelo SUS ainda pretende – supremo absurdo – jogar o paciente negro contra o médico, taxando-o, nas entrelinhas, de “racista”. Assim, de maneira genérica e desavergonhada.

     O mais interessante é a postura “Jeckyll & Hyde” que adota o paciente, geralmente aquele que não tem razão, apenas descarrega toda a tensão e as frustrações de seu dia a dia no alvo da vez, o do jaleco branco. Por experiência própria, rarissimamente o paciente que desrespeita, desanca e ultraja a secretária na sala de espera faz o mesmo dentro do consultório. Entra calmo, doce, sorridente; dificilmente você acreditará que é a mesma pessoa que sua secretária vem, depois, informar que a chamou de “vagabunda” para baixo. O paciente que não tem a moral, a ética, o pudor de ser justo em suas reivindicações, aquele que no fundo sabe que não tem razão, é um Hyde na sala de espera e um Jeckyll no consultório. É um covarde, que não aprendeu em casa que direitos e deveres andam de mãos dadas, sob o olhar vigilante da responsabilidade, para que a liberdade possa existir.

     Recentemente, aprendeu a usar mais uma arma em sua pusilanimidade: as queixas feitas diretamente ao plano de saúde. Esses tipos comparecem á consulta, como de praxe, cheios de sorrisos. Brincam, conversam amigavelmente. Não se iluda. Quando chegar a notificação do convênio, pedindo-lhe “uma defesa em uma semana”, você não acreditará que é a mesma pessoa, tais os termos raivosos e agressivos que usará referindo-se a sua pessoa. Geralmente se queixará de aspectos que, houvesse questionado pessoalmente, você teria facilmente desfeito o mal entendido. Revelará um desconhecimento quase hilariante do funcionamento de um atendimento médico, ou da ciência envolvida nele, em queixas floreadas e descabidas.

     É óbvio que essa ferramenta é extremamente útil, nos casos em que as queixas são bem fundamentadas. No entanto, como toda ferramenta, o excesso de liberdade e a má educação tendem a conduzir a abusos. O que essa gente não percebe é que, com o mau uso, a própria ferramenta começa a cair em descrédito. As queixas vão ser analisadas por pessoal técnico, que conhece do assunto assim como o profissional que elabora sua defesa. Sendo assim, no momento de registrar sua queixa, esteja muito bem fundamentado; resista à tentação perversa de “enfeitar” ou exagerar em suas argumentações, sob pena de cair em descrédito e não lograr nenhum de seus objetivos possíveis: a correção de uma injustiça/mau atendimento, ou “ferrar” o infeliz para quem, pouco tempo atrás, você era todo sorrisos e salamaleques.

     Diz a lenda que começou a chegar no Céu um número cada vez maior de pessoas se queixando dos médicos, certamente vindos de algum governo petista. Jesus, preocupado, vestiu uma roupa branca, colocou um estetoscópio no pescoço e, disfarçado, baixou num ambulatório do SUS. Depois de fazer uns milagrezinhos de lambuja, como transformar água suja em antibiótico e multiplicar as macas, mandou entrar no consultório um paraplégico, vítima de um acidente de carro. Jesus colocou a mão numa perna do moço, e disse: “Mexa a perna!” Ainda que contrariado, fazendo cara de escárnio, o rapaz tentou... e a perna mexeu! Ainda estava surpreso, olhos arregalados olhando a perna, quando Jesus pôs a mão sobre a outra perna e falou: “Agora mexa esta perna!” E a perna mexeu! O moço mal se continha em seu espanto, quando Jesus falou: “Levanta-te e anda!” Não deu outra. O ex-paraplégico saiu dando pulos de alegria do consultório médico. Na entrada do posto de saúde encontrou o próximo paciente, que lhe perguntou a meia boca: “O médico é bom?” E ele, parando de pular e sussurrando: “Nada, nem mediu minha pressão!”

     Agora com licença, que tenho uma defesa por escrito para fazer.

 
 

domingo, 26 de outubro de 2014

AGORA QUE A TORMENTA PASSOU...


 
Quem me acompanha há mais tempo, sabe que NUNCA me viu falar de política na internet antes do lançamento do “Mais Médicos”, onde toda uma classe profissional, a minha, foi covardemente responsabilizada pelo caos da saúde no país; caos cuja culpa é de um governo que, verdade seja dita, não dá A MÍNIMA para esse assunto. Como profissional há 25 anos, 15 deles em hospital público, vendo agora gente sofrer e até morrer graças à inaptidão de pessoas infiltradas no sistema pelo governo, como parte de um projeto asqueroso de doutrinamento ideológico e lavagem de dinheiro, me senti na obrigação de me manifestar, protestando e denunciando. Pela primeira vez, naquele tempo, escrevi aqui a frase ‘FELIZ ELEIÇÃO EM 2014!”, fato que se repetiu quase diariamente até o dia de hoje.

Com o tempo, as coisas se desdobraram: o partido oficial se revelou como um bando criminoso, uma verdadeira máfia, envolvida em todo tipo de ilícito possível, blindada por trás da impunidade proporcionada pelo aparelhamento da máquina pública em seus 3 poderes, parte de um projeto de poder eterno. Foi aterrador perceber como o mecanismo de aliciamento psicológico dessa corja não difere em NADA do processo de inculcação que origina os fanáticos religiosos, atados por correntes pesadas a uma suposta “verdade”, incapazes de raciocinar fora dela. Mudou (e evoluiu) meu conceito de “inteligência” ao avaliar as pessoas. A luta contra essa egrégora estimuladora da inércia, aniquiladora da liberdade do espírito humano, em consequência, se ampliou. Mesmo não enxergando um candidato ideal, optamos pelo “menos pior” (com diferença considerável!).

Lamentável foi ter de descer tantas vezes o debate ao nível dessas pessoas, ao perceber que, muitas vezes, é a língua que muita gente (que pretendíamos atingir) compreende. No fim, chegou a parecer que eles seriam derrotados.
 
Não foram. E pensando melhor, isso é O QUE FAZ SENTIDO. Digo mais, 48% de rejeição para esse governo baixo, incompetente, mesquinho, é um excelente resultado! Um povo sem educação (estou falado de escola) escolhe seus dirigentes a partir de critérios primários, imediatistas, estreitos, e foi o que esse governo deu a eles. Basta ver o mapa final: vitória absoluta do PT nos bolsões de pobreza e ignorância, vitória relativa nos estados mistos, derrota nos estados com melhor educação e esclarecimento. Com raras exceções, sim, mas a regra salta aos olhos. Bem havia me advertido um amigo: “no meu rancho de pesca, no extremo norte de Minas, ninguém liga para corrupção, para inflação, para nada disso. Todos vivem de bolsa-pescador, e enquanto isso continuar, vão votar neles.” Cabe também destacar uma frase que está rolando na internet, atribuída a Orson Scott Card: “se os porcos pudessem votar, o homem com o balde de comida seria eleito sempre, não importa quantos porcos ele já tenha abatido no recinto ao lado.” E é esta a dura verdade.

Não vou contabilizar aqui os 20% de abstenções na eleição, ainda que o (único) valor disso seja o alerta para o descrédito dos nossos políticos, já que um em cada cinco brasileiros não votou. Não contam os omissos, que por ignorância dão pouco valor à discussão política, pois ela influencia diretamente suas vidas. Não contam os que adotam aquela postura “blasé”, de que “não voto em nenhum dos dois, porque considero que nenhum me representa”. De pé sobre seu pequeno Monte Olimpo, não percebem que quem não se posiciona dentro da realidade que o cerca, por bem ou por mal, é um zero dentro da História, perde o direito de se queixar dos efeitos, e acaba como aqueles dejetos humanos, tão desagradáveis, com que nos deparamos muitas vezes no mar em torno de nossas praias: vão para cá e para cá, inertes ao sabor das marés, até serem jogados por uma onda mais eficaz na areia da praia, onde estão fadados a serem sepultados eternamente. Não conta a chamada “esquerda-caviar”, que sente prazer numa postura “ideológica” absolutamente desvinculada do que são e de como agem, que em sua suposta “intelectualidade” nada mais são que outras reses marcadas a ferro quente com o brasão da ideologia; uma rês é igual a outra rês, ainda que só uma delas tenha diploma. Seus números, no total computado, está longe de fazer diferença. O “protesto” da abstenção é fraco, só tem efeito momentâneo.

 Já os 48% de rejeição, inéditos nas eleições deste país, esses dizem muito! Dilma parece ter “sentido o golpe”, em seu primeiro discurso pós-reeleição, ao falar em “diálogo e conciliação”. Indica que, a despeito da exploração da miséria (material e psicológica), do uso da pesada máquina pública, do jogo ardiloso das falácias, factoides e ardis herdados do totalitarismo, eles QUASE perderam. E quero crer que a oposição também tenha se dado conta disso, e percebido que não basta uma campanha eleitoral, é necessária uma postura opositora ATIVA, contundente, constante, porque, a despeito disso, eles QUASE ganharam. Uma postura mais ativa e corajosa poderia ter feito diferença.
 
Quanto a mim? Foi mais de um ano de “FELIZ ELEIÇÃO EM 2014!” Vejo amigos e colegas deprimidos, raivosos, chorosos, e (me desculpem a sinceridade) acho graça nisso, porque sei que minha vida, e a vida da maioria absoluta deles, não vai mudar significativamente. Em nada. Tentamos fazer um Brasil melhor pela sinceridade de nosso amor a este país, um país melhor para os menos favorecidos, porque estes SIM, vão passar por maus bocados a perseverar o atual rumo das coisas. Um país melhor para nossos filhos. E para os filhos deles, mais que tudo, porque diferentemente dos nossos, dificilmente poderão dar “uma banana” e sair daqui em condições dignas, em último caso. Tentamos, mas, apesar de nosso empenho sincero, fomos pequenos diante da enormidade da máquina perversa de domínio, e da obtusidade de tantos que poderiam ajudar, mas optaram por aderir ao discurso oficial. O mais difícil, confesso, vai ser aguentar mais quatro anos dessa imbecilidade de “presidentA”.

Mas serão quatro anos, para mim, de paz de espírito. Porque não compactuei com um esquema inédito e monstruoso de corrupção que espolia os recursos do país. Não aplaudi criminosos como heróis. Porque não virei o rosto para o outro lado diante da mentira mal intencionada, do alinhamento com ditaduras desumanas, do bolivarianismo insidioso, de crimes mais graves, como assassinato e o mais cruel descaso para com a vida dos menos favorecidos. Não fui cúmplice da impostura, da perversidade nem do embuste, porque não foi o que aprendi em casa, nem na vida. Fui patriota. Fui honesto ao fazer o que estava ao meu alcance, e preservei meu direito de cobrar, de denunciar, de reivindicar, com a fronte alta, olho no olho. Parabéns a vocês, que lutaram a boa luta. Paz. Vou agora (enfim!) voltar ao que interessa: minha família, meu trabalho, meus escritos. Fiquem por aí, sentem, relaxem e se divirtam. Mas, só para que a canalhada não ache que nossos olhos estão de todo fechados, fica meu recado final: “FELIZ ELEIÇÃO EM 2018!” Inté!
 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

O SILÊNCIO DOS INOCENTES



     Há trinta anos, aproximadamente, enquanto eu frequentava os bancos da escola de medicina e começava a enxergar, estupefato, a decadência vertiginosa da medicina pública brasileira, imaginava o seguinte: “isso não pode continuar nesse ritmo por muito tempo, alguma coisa vai explodir. O povo vai para as ruas e, daqui a trinta anos, quando eu for um profissional estabelecido no mercado, a coisa vai estar muito melhor que hoje.”

     Hoje, num dia de maio, trinta anos depois, estou chegando do inferno. Acabo de receber minha “dose de realidade”, aquela que qualquer um de nós está fadado a receber, uma, duas ou três vezes, em algum momento da vida. Eu e minha esposa passamos 48h dentro de um pronto-socorro de urgência, com nosso filho de um mês de idade, acometido por uma dessas doenças respiratórias que atacam principalmente crianças quando o clima esfria. Se você entende o mínimo de medicina, sabe que um pronto-socorro não é lugar para qualquer paciente permanecer por 48h. Acontece que não existem, praticamente, leitos para internação de crianças em Belo Horizonte. Não só crianças, na verdade, pois passei por drama semelhante faz poucos anos com meu pai, em outro hospital. Nos últimos onze anos a taxa de leitos hospitalares caiu em cerca de 15% no Brasil, enquanto a população e a morbidade crescem. Nos últimos cinco anos, 284 hospitais privados, que atendiam SUS, foram fechados, a maioria no interior do país, por falta de condições econômicas para continuarem funcionando sem a correção da tabela paga. Se em BH está assim, como em SP e RJ (capitais), imagine como está em Santo Antão do Pé Vermelho.

     Meu filho de um mês de idade passou 48h num salão gelado, num box separado dos demais por cortinas, como você vê na foto acima. Passei as duas madrugadas sentado na única cadeira disponível, durante um bom tempo embalando meu bebê nos braços, enquanto minha esposa tentava garimpar algumas horas de sono na cama do box. O tempo todo entravam crianças sofrendo, durante a noite inteira, a maioria absoluta sofrendo com doenças respiratórias, como asma e bronquite. A maioria não dispunha sequer de um box com cortinas como o nosso, e dormia como podia nas cadeiras das salas de espera. Vi e ouvi coisas de partir o coração, mas que fogem ao objetivo deste artigo.

     Nossa maior preocupação era o fato de nosso bebê ser tão pequeno, ficando exposto a todo tipo de gente doente que por ali passasse. Minha esposa insistia para que eu fosse até a equipe de médicos e enfermeiros de plantão, insistir na internação que, obviamente, foi pedida no primeiro momento. Eu ia, constrangido, porque já sabia o resultado: um sorriso triste de “estou de mãos atadas”, um olhar baixo de “você sabe que não posso fazer mais que isso”. Um PS no Brasil é um dique, que represa o sofrimento e a aflição humana, e o médico plantonista é quem segura essa represa nas costas, porque simplesmente não tem como fazê-la escoar. Trabalho em um, sei como é. Mas hoje não, hoje estou aqui falando a vocês como paciente.

     Na segunda noite a plantonista, por camaradagem, nos arranjou um isolado para diminuir o risco a que o bebê estava exposto. Foi a salvação, porque a segunda noite foi infernal: uma criança grave, que foi entubada e deixada ali mesmo, por falta de vagas no CTI. Luzes acesas, monitores piscando, crianças chorando, macas entrando e saindo sem descanso, até o dia amanhecer.  

     Eu, olhando pela janelinha do isolado, só sentia crescer minha indignação. A coisa chegou a um ponto muito mais baixo do que eu imaginava trinta anos atrás. Hoje não importa se você paga convênio ou é paciente do SUS. Não há leitos. Não há estrutura. Nossas crianças, nossos velhos e nossos fracos, estão correndo um elevadíssimo risco de morte por desassistência. Há trinta anos um governo que deixasse a saúde chegar a esse ponto seria um governo omisso, relapso. Mas nos dias de hoje, um governo que enxerga esse panorama e cria um programa eleitoreiro e de lavagem de dinheiro como o “Mais Médicos”, que NADA tem a ver com saúde, mas sim cria uma cortina de fumaça, como se “a coisa estivesse melhorando”, enquanto ela, na verdade, vai mais para o buraco, é um governo criminoso. Assassino. Se o governo dispõe de bilhões de reais para mandar a Cuba em troca de merreca, na melhor tradição petista de construir cafua e rotular como “palácio”, poderia facilmente, se houvesse vontade política, ter resolvido mais de 75% do problema real com esse mesmo dinheiro, focando em dois pilares básicos: infraestrutura e carreira de estado para o profissional médico, o que asseguraria atendimento em grande parte das áreas remotas do país. Não se pode alegar ignorância. Uma comissão de médicos funciona como consultora do governo federal para esses assuntos. Adib Jatene, que faz parte dessa comissão, disse na TV com todas as letras que a comissão em nenhum momento foi consultada na questão do “Mais Médicos”, que foi uma medida absolutamente política. Mas o PT, seguindo a tradição de um dos pilares estratégicos de sua ideologia, abriu mais um ramo da “luta de classes” que fomenta com paixão, na forma do "paciente X médico", ao depositar sobre a classe médica a culpa pelo caos da saúde brasileira.

     E aqui estou eu, médico, “corporativista”, “máfia de branco”, temendo pela vida do meu bebê graças a uma “política de saúde” inexistente, que não acena com melhora alguma nem a longo prazo, com a bênção de uma boa parte da população. Você, que me conhece ou me acompanha nas redes sociais, pode observar que jamais me viu discutir política na rede ANTES do “Mais Médicos”. Hoje eu o faço quase diariamente, com intensidade, porque esse crime cometido por pessoas sem caráter vai contra todo o idealismo que me levou à profissão, vai contra tudo que anseio para a saúde do meu povo, não por “corporativismo”, mas simplesmente pelo conhecimento que tenho, por viver diariamente contemplando a máquina por dentro. Eu e a maior parte dos 400.000 colegas de profissão espalhados pelo país, sacrificando-se dia a dia com aquilo que temos à mão, movidos pela esperança quase convertida em fé cega, em algo que nem de longe se prenuncia. Falo nisso todos os dias porque sinto que, ao me omitir, por comodismo ou covardia, perco o direito de me indignar depois.

     Mas hoje não, hoje sou paciente. Acabo de chegar em casa e, agradeço a Deus, com minha família íntegra. Sei que aquele PS está lotado de novo esta noite. Como estará amanhã, e depois de amanhã, de gente aflita, desesperada, sentindo-se num beco quase sem saída. O beco, lamento dizer, é MESMO quase sem saída, e tende a piorar.

     Finalmente, vai minha mensagem a você, petista, petistoide ou simpatizante enrustido: você, que aplaude a “política de saúde” desse bando que ocupa as cadeiras de comando deste país, um dia vai passar pelo que passei hoje: sua “dose de realidade”. Note que não é uma “praga” que lhe rogo, mas uma constatação de um fato muito provável, previsto por alguém de dentro da máquina. Um dia você vai estar lá, de mãos atadas, diante do sofrimento de um pai, irmão ou filho. E naquele momento em que seu pequeno, incapaz de compreender a razão do próprio sofrimento, com aquele tubo de plástico enfiado no nariz para ajudá-lo no esforço desse ato tão rotineiro e subestimado que é respirar, quando ele olhar por cima da máscara da nebulização e seus olhos se encontrarem com os seus, e você conseguir ler neles claramente um pedido de socorro silencioso, mudo, um “me ajude” que você, com a alma despencando num abismo de dor, compreender que não é capaz de aliviar... Nesse momento, tenha certeza, você não vai se lembrar de seus “heróis”: Lula. Dilma. Padilha. Os “presos políticos” Dirceu e Genoíno; nesse momento terrível, “companheiro”, você vai se lembrar é de MIM.

 


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A GALINHA VERDE-AMARELA

 


 
     Era uma vez uma Galinha Verde-amarela, que morava com seus pintinhos numa Fazenda. Num belo dia de sol, a Galinha percebeu que o milho estava maduro, pronto para ser colhido e virar um bom alimento. Sacudindo o empreendedorismo e a iniciativa que jaziam obnubilados sob o marasmo que se respirava naqueles dias, a Galinha teve a ideia de fazer um delicioso bolo de milho. Todos iam gostar!
     Era muito trabalho: ela precisava de bastante milho para o bolo. Quem podia ajudar a colher a espiga de milho no pé? Quem podia ajudar a debulhar todo aquele milho? Quem podia ajudar a moer o milho para fazer a farinha para o bolo?
     Foi pensando nisso que a Galinha encontrou seus amigos:
     “Quem pode me ajudar a colher o milho para fazer um delicioso bolo?”
     “Eu é que não”, disse o Gato. “Estou com muito sono.”
     “Eu é que não”, disse o Cachorro. “Estou muito ocupado.”
     “Eu é que não”, disse o Porco. “Acabei de almoçar.”
     “Eu é que não”, disse a Vaca. “Está na hora da novela.”
     Todo mundo disse não.
     Então, a Galinha foi preparar tudo sozinha: colheu as espigas, debulhou o milho, moeu a farinha, preparou o bolo e colocou no forno.
     Quando o bolo ficou pronto ...
     Aquele cheirinho bom foi fazendo os amigos se chegarem. Todos ficaram com água na boca. Então a Galinha disse:
     “Quem foi que me ajudou a colher o milho, preparar o milho, para fazer o bolo?”
     Todos ficaram bem quietinhos, fazendo aquela cara de coitados, como era de praxe naqueles dias quando você queria alguma coisa a que não tinha direito.
     “Então quem vai comer o delicioso bolo de milho sou eu e meus pintinhos, apenas. Vocês podem voltar a tratar de suas coisas importantíssimas.”
     Foi nessa hora que chegou o Sapo Barbudo, a quem a Galinha nem sequer havia pedido ajuda, por saber que era perda de tempo.
     “Dá licença, companheira”, disse o Sapo, com sua voz rouca e áspera escorrendo por sobre sua comprida língua presa. “Acontece que tivemos uma eleição recentemente, e fui eleito Presidente desta Fazenda. Como parte de nosso pacote de medidas, visando a melhoria da qualidade de vida dos menos favorecidos, criamos o bolsa-bolo.”
     “Bolsa-bolo?”, indagou a Galinha sem entender, mas sentindo um cheiro fedido subindo-lhe pelas canelas.
     “Exatamente. Para cada bolo feito na Fazenda, uma fatia tem de ser distribuída a cada um dos que não possuem bolo.”
     O Sapo Barbudo observou, satisfeito, enquanto o Gato, o Cachorro, o Porco, a Vaca, o Peru, o Cavalo, o Bode, a Ovelha, a Codorna, o Coelho e até o Tatu, diante do olhar assustado dos pintinhos, faziam uma fila junto à mesa sobre a qual cintilava o bolo de milho, redondo como uma lua cheia, dourado como o sol.
     “E tem mais, companheira”, continuou o Sapo, sorrindo com os olhinhos safados, “além da minha fatia habitual, como representante do governo tenho direito a uma pequena parte da fatia de cada um dos demais. Somando tudo, acho que dá aproximadamente metade do bolo.”
     A Galinha, boquaiberta, viu o Sapo saltitar porta afora carregando metade do bolo de milho que ela fizera com tanto gosto e esforço. Após a distribuição das cotas, sobraram apenas algumas migalhas para ela e seus pintinhos.
     No dia seguinte, bem cedo, a Galinha arrumou as malas com sua família e deixou a Fazenda para nunca mais. Dizem que hoje ela mora no Canadá, feliz da vida, ganhando um salário justo, tendo saúde e educação dignas para os pintinhos.
     Enquanto isso, na Fazenda, o Sapo Barbudo chapinhava os pés no lamaçal do brejo que, inexplicavelmente, engolia paulatinamente a Fazenda centímetro por centímetro. Ao seu lado, sua fiel ajudante e sucessora natural, a Pomba Gira, balbuciou em seu estilo único:
     “É... Eu. Nós. A gente. A Galinha se mandou. É... Criança. Cachorro na sombra. Quem vai agora. É... Fazer. Bolo?”
     “Não se preocupe, companheira”, acalmou o Sapo Barbudo, num ronco de confidência. “Estou negociando a vinda de umas frangas cubanas por um precinho camarada. Bolo é demais para a capacidade delas, mas parece que fazem umas brevidades que dão para enganar direitinho. Mas deixa para noticiar isso na véspera das eleições.”
     Ao longe o sol se punha, colorindo o céu de vermelho.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Novos quadrinhos para velhas crianças


Sidney Gusman, nosso querido Sidão, é editor da Mauricio de Sousa Produções. Foi durante o FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos) de 2011, se não me engano, que ele me mostrou, pela primeira vez, os teasers do novo projeto pelo qual era responsável: a série Graphic MSP.
     Lembro-me de que na época se discutia, em alguns grupos, o real alcance da Turma da Mônica Jovem como “renovação” da franquia, atingindo a geração que deixava a infância e a Turminha, em busca de quadrinhos mais “maduros”. Quando vi os desenhos do Sidney, lembro-me bem de ter sido invadido por um entusiasmo quase infantil, especialmente com o teaser do Piteco, e disse: “Sidão, ISSO é renovação! Vai arrebentar!” Eu adoro quando tenho razão.

     A série Graphic MSP propõe a criação de histórias cujos personagens são exatamente os mesmos da Turma da Mônica, porém com outra apresentação: texto mais adulto, mais ousado; desenhos ao estilo de diferentes autores, sem um compromisso estrito com o visual de Mônica, Cebolinha e companhia que estamos acostumados a ver, com os quais aprendemos a ler. Até agora, a partir de outubro de 2012, foram quatro álbuns, com apresentação gráfica impecável, edições de luxo que já se perfilam em minha estante. Vamos colocar uma lupa sobre cada uma delas...
 

     A primeira publicação foi “Astronauta – Magnetar”, de Danilo Beiruth. Considero um grande acerto a escolha desta obra para abrir a coleção, pois ela representa de maneira eloquente tudo aquilo a que a série se propõe. As referências com relação ao Astronauta original, com sua roupa espacial e espaçonave esféricas, são facilmente reconhecíveis. No entanto, o texto é pura ficção científica, leitura adulta, densa. Para os especialistas em FC: enquanto o Astronauta original se presta bem a uma “space opera”, o Astronauta de “Magnetar” é FC “hard”. Já está prometida uma continuação.
 

 
     Seguiu-se “Laços”, dos irmãos Vitor e Lu Cafaggi. Nunca me canso de dizer o quanto sou fã desses meninos desde que conheci “Valente”, uma das séries em quadrinhos mais deliciosas que tenho lido há anos. Em “Laços” os autores conseguem transmitir a mesma poesia, a mesma sensibilidade e a mesma relevância em termos de relacionamento humano que derramam das páginas de sua série própria, e as conexões (ou “laços”) com a série original de Mauricio de Sousa são tanto abundantes quanto adequadas.

 
     O terceiro volume da série foi “Chico Bento – Pavor Espaciar”, de Gustavo Duarte. História divertidíssima, trazendo como bônus uma cena antológica do Jotalhão crucificado que me remeteu à Estátua da Liberdade no final de “Planeta dos Macacos”. O ritmo peculiar dos desenhos, onde uma vez uma página inteira (ou mais) é usada para mostrar um personagem simplesmente se esgueirando por um corredor, poderia ser interpretada por alguém menos avisado como “encheção de linguiça”. Entretanto, confere um ritmo de desenho animado absolutamente compatível (e catalisador) com o humor do texto. Um senão: apesar de ser uma publicação admirável em termos artísticos, é a que menos se adéqua, a meu ver, ao “espírito” da série. A história, com pouca modificação, poderia ser adaptada para o formato (texto e desenhos) do Chico Bento original. Sobrou qualidade, mas faltou um pouco de ousadia.

 
     Finalmente, temos “Piteco – Ingá”, do artista Shiko. O que dizer? Nós, leitores de literatura fantástica, estamos constantemente em busca, como garimpeiros incansáveis em páginas de textos e/ou desenhos, do chamado “sense of wonder”. Aquele encantamento que nos eleva, nos arrebata do mundo real e nos mergulha num universo estranho que acolhemos, e do qual nos alimentamos com prazer inigualável. “Ingá” é puro “sense of wonder”. Referências sólidas à série de Mauricio de Sousa, ação empolgante, inclusão de elementos interessantíssimos da mitologia de diferentes culturas, e um alicerce sólido (e muitíssimo bem sacado) sobre a misteriosa Pedra do Ingá, localizada no sertão da Paraíba.

     A boa notícia é que já estão previstos, ao que parece, mais seis álbuns da coleção, explorando personagens menos conhecidos da mitologia mauriciana, como Papa-Capim e a Turma da Mata.
 
     Não conheço eventuais pretensões de Sidão & Mauricio no sentido de levarem essa coleção para o âmbito internacional. Mas que merece, merece, e muito. Eu sugeriria, como “cartões de visitas” para o público gringo (europeu ou norte-americano), a utilização de “Laços” e “Piteco”. Enquanto “Chico Bento” foge um pouco da proposta (r)evolucionária da coleção, “Magnetar” é ficção científica para a mente, explorando um elemento pouco conhecido até pelos próprios especialistas em FC. Essa “racionalidade”, a meu ver, coloca em perigo a manutenção do “pique” da série em sua continuidade. Já as duas primeiras edições sugeridas trazem alimento para o racional e para o emocional em doses certas, bem ao gosto do leitor lá de fora. Tenho acompanhado os rumos da literatura fantástica norte-americana, e detecto um “apetite” não satisfeito por histórias diferentes, de culturas não familiares à deles. Para isso, a coleção Graphic MSP me parece um prato cheio. Jogo essa peteca, com todo meu entusiasmo, para a dupla Mauricio e Sidão. Para o alto, e avante!