quinta-feira, 30 de abril de 2015

BURROCRACIA


Antes de começar a ler, saiba que esta crônica é a transcrição quase literal de um fato verídico. Aconteceu comigo, no dia 23/4/15.

     Necessitando de um demonstrativo de uma de minhas fontes pagadoras para o Imposto de Renda, recorri ao site. Hoje em dia a maioria dessas coisas se resolve “on line”, viva a ciência. No caso, porém, o site me pedia um certo “código verificador” que eu não tinha. Conformado, fui pessoalmente ao departamento de RH do hospital.

     “Aqui não tem jeito”, me explicam. “O senhor vai ter de ir ao posto UAI na Praça Sete.”

     O “Posto UAI” é aquele lugar onde você tira qualquer documento, paga multa de trânsito, etc. Um “Asilo Arkham Para Criminosos Insanos” da burocracia. Estou no horário do almoço. Olho o relógio, emito um suspiro e vou.

     Passo pelo balcão de Informações. Sou orientado a seguir por um labirinto de corredores de deixar o Minotauro doido, e chego ao setor correto. O número da senha me desanima. Tem mais de vinte pessoas na minha frente. Mas são muitos atendentes, então a coisa anda melhor do que eu imaginava.

     Mas tem os “preferenciais”. Já que ninguém está ouvindo meus pensamentos, permito-me ser politicamente incorreto. Esse monte de velho passando na minha frente faria sentido numa fila, de pé, sofrimento justificado. Aqui está todo mundo sentado em cadeiras confortáveis. Tem ar condicionado. Estou no meu horário de almoço, que se escoa dolorosamente. Esses velhos vão sair daqui e voltar para casa. Ou entrar uma agência de banco para bater papo com o caixa e atrasar alguma outra fila. Ou jogar dominó na praça. Preferencial sou eu, caramba! Um velho passa exatamente na frente do meu número, e o cabelo dele é menos grisalho que o meu.

     Sou chamado ao balcão depois de uns quarenta minutos.

     “Um documento com foto, por favor”, pede a moça, laconicamente. Apresento minha Identidade Profissional. Ela olha e torce o nariz.

     “Tem algum mais recente?”

     “Moça, isso aí é minha identidade. Vale até eu morrer.” Mostro a ela onde está escrito: “Documento de identidade nos termos da Lei número 6.206/75”.

     “Certo, senhor, mas temos ordens de não aceitar documento com mais de dez anos de validade. O senhor não tem carteira de motorista?”

     Tenho, e mostro a ela, aliviado. Ela torce o nariz de novo.

     “Está vencida.”

     “Como assim, moça?”

     Ela me mostra. De fato, minha habilitação venceu em 22/02/2015, e eu nem vi.

     “Moça, tudo bem que está vencida, mas a outra não vence. É minha identidade...”

     “Infelizmente não posso aceitar, senhor.”

     Começo a ficar nervoso.

     “Tem alguém aqui com mais bom senso, com quem eu possa falar sobre isso?”

     “O senhor pode tentar na Coordenação, descendo o segundo lance de escadas, o balcão de vidro.”

     Vejo no olhar e no sorriso torto o que ela está me dizendo com seus pensamentos: “Você jamais vai sair daqui hoje com esse documento. Perdeu, playboy, cadê seu deus agora? Rá rá!”

     Assim mesmo vou à Coordenação, onde sou atendido por um gordinho simpático. Explico de novo o absurdo da situação:

     “Essa é minha identidade, de acordo com a...”

     “Lei número 6.206/75. Sei.”

     Desconfio que não estou fazendo uma reclamação original. Isso não é bom.

     “Infelizmente não podemos aceitar documentos antigos. O documento serve para que se reconheça o usuário pela foto...”

     Coloco meu documento, foto para a frente, do ladinho do meu rosto, junto ao vidro.

     “Olha a foto. Olha para mim. Sou eu, amigo.”

     Ele faz beiço. Franze a testa.

     “Hummm... Tem diferenças...”

     “Que diferenças, companheiro? Sou eu, claramente!”

    “Hummm... O cabelo está mais branco.”

     Lembro-me do velho de cabelos escuros que passou na minha frente lá atrás. Deve ser veterano nesse hospício. Velho maldito.

     “Ah, seu eu soubesse que teria de vir aqui, teria pintado os cabelos, mas foi uma coisa inesperada! Você tá de brincadeira, né? E se eu fosse mulher? Mulher pinta e corta cabelo todo mês!”

     “É, se fosse o caso, ia ter problema também. O senhor precisa entender que isso é para sua segurança, para que ninguém possa usar um documento seu para abrir uma conta no banco, ou...”

     “Rapaz, eu só quero um demonstrativo para o Imposto de Renda, só isso! É para pagar, não é para ganhar dinheiro nenhum! Vou te dar meu cartão. Sou oftalmologista, vou te passar uns óculos e você vai ver que este aqui sou eu!”

     “O senhor não tem outro documento?”

     Mostro a carteira de habilitação vencida.

     “Ah, esse é o senhor! Viu? Não é questão de óculos...”

     “A diferença é que nesta foto estou mais gordo. Só isso. Pode falar, não vou me ofender. Mais gordo. Esta serve, então?”

     “Infelizmente não. Como o senhor disse, está vencida.”

     “Por dois meses, companheiro! Escute... tem alguém mais razoável acima de você para conversar comigo?”

     “Não senhor. O plantão sou eu e meu colega.”

     Ele aponta por sobre o ombro, para o rapazinho cujo penteado, certamente, é para homenagear o Neymar. Duvido que seja o mesmo penteado da sua carteira de identidade. Resolvo jogar a batata quente para ele:

     “OK. Preciso desse documento para o IR. O que você me sugere?”

     “O senhor pode tirar uma nova via de sua carteira de identidade...”

    “Amigo, NÃO VAI DAR TEMPO! É para o fim deste mês.”

    “São cinco dias úteis para um documento novo. Se o senhor for lá hoje...”

     “Cara, vocês já comeram TODO o meu horário de almoço! Tenho de trabalhar! Não posso ir lá hoje! Veja só: vou fazer uma ocorrência policial. Se tiver problemas com a Receita Federal por causa dessa idiotice, vou explicar que vocês é que se recusaram a aceitar minha carteira de identidade...”

     Ele se embatuca um pouco.

     “Não, não, não precisa disso... Veja bem”, segreda ele, aproximando-se e falando baixo: “O senhor pode usar uma procuração.”

     “Como assim?”

     “O senhor deve ter um advogado, ou alguém que cuida de suas coisas. Faz uma procuração, reconhece firma no cartório, e a pessoa pode pegar seu papel usando os documentos dela. Estou te dando uma dica por fora da curva, entendeu?”

     Olho para ele, sério. Ele não está brincando. Incrível. Agradeço e vou embora.

     Chegando em casa, comento o caso e ninguém acredita. Mas minha cunhada, também médica, faz uma observação:

     “Peraí, mas um tempo atrás o CRM mudou o layout do documento, e trocou todas as carteiras. Tem de ter uma data de expedição nova!”

     Vou conferir, e é verdade. Do lado da data de expedição original tem uma NOVA data de expedição do documento: 26/7/2012! Não acredito que não me lembrei do detalhe. E que nenhum dos malditos daquela repartição viu isso.

     No dia seguinte, hora do almoço, retorno ao Posto UAI. Decidi não mencionar o que aconteceu na véspera, pronto para esfregar minha data de expedição na fuça do primeiro idiota que me questionar a respeito. Dessa vez cheguei mais cedo, e só havia uns dez na minha frente. Poucos velhos também. Promissor.

     A moça que me atende, uma diferente do dia anterior, me pede o documento com foto. Entrego a Identidade Profissional. Ela olha a foto, olha minha cara, e nem questiona. Vai lá na impressora e volta com meu documento para o Imposto de Renda, segundos depois.

     Limito-me a descrever os fatos, porque não sei o que mais comentar. Não sei o que dizer sobre essa sandice, além do que aconteceu. E fiz questão de destacar, no início, que foram fatos reais. Se não aviso, como escritor de ficção, vocês vão dizer que estou apelando na fantasia. Não estou.