Se você nunca ouviu falar de
Harlan Ellison, ou não gosta de ficção científica ou passou os últimos 50 anos
preso em Talos IV. Trata-se de um dos mais importantes escritores de ficção
científica e terror, de sua geração e de todas mais. Basta dizer que Ellison
coleciona, além de diversos outros prêmios de destaque, nada menos que onze
prêmios Hugo e cinco Nebula, as duas mais prestigiosas premiações da literatura
de FC mundial. OK, mas você prefere histórias em quadrinhos de super-herois,
certo? Saiba, então, que foi Ellison quem criou a saga de Jarella, uma das
coadjuvantes mais marcantes das HQs do Incrível Hulk da Marvel. Entre as obras
mais famosas desse escritor fabuloso, que, se não me engano, jamais havia sido
publicado no Brasil, estão o conto “I Have No
Mouth, and I Must Scream” (1967)
e a novela "A Boy and
His Dog" (1969), transformada em filme em 1975. Isso sem
falar nos inúmeros roteiros para telesséries como Babylon 5, Outer Limits, A Noviça Voadora, O Homem
da U.N.C.L.E., Jornada nas Estrelas, etc.
É sobre esta última que
queremos falar. Percebeu quando eu disse, acima, que Ellison jamais “havia
sido” publicado por aqui? Bem, isso acaba de mudar de uma forma, para mim,
inesperada. A editora Mythos lançou, neste mês de outubro de 2016, a versão em
quadrinhos de “The City on the Edge of
Forever” (Cidade à Beira da Eternidade),
uma adaptação fiel do roteiro original de Harlan Ellison para aquele que é,
na opinião da maioria dos fãs e na minha própria, o melhor dos 79 episódios da
série clássica de Jornada nas Estrelas, um dos dois únicos episódios da
franquia a ganharem um prêmio Hugo.
Um pouco de história: apesar
da qualidade habitual do texto de Ellison, alguns elementos do roteiro
desagradaram a Gene Roddenberry, criador de Jornada nas Estrelas, como, por
exemplo, uma situação de comércio de drogas ilícitas a bordo da Enterprise.
Roddenberry modificou extensamente o texto original até que se transformasse na
versão que foi ao ar. Isso levou ao rompimento da relação entre os dois
autores, e Ellison entrou para a seleta lista de desafetos de Gene, de quem
passou a ser um crítico feroz. Curiosamente, assim como a versão adaptada de
Roddenberry ganhou o Hugo em 1968, o roteiro original de Harlan Ellison ganhou,
no mesmo ano, o Writers Guild Awards para
melhor drama episódico na televisão. Tanto talento junto não merecia cair no
esquecimento. Assim como o episódio da TV encontra-se à disposição em inglês e
também aqui no Brasil, em DVD, blue-ray e, ocasionalmente, na TV paga, o
roteiro de Ellison foi publicado nos EUA, como livro, em 1976. A adaptação em
quadrinhos viu a luz apenas em 2014, pelas mãos habilidosas de Scott Tipton
& David Tipton (roteiro adaptado) e J.K. Woodward (arte). Como eu disse,
para meu total encantamento, a versão em português acaba de chegar ao Brasil, e
às minhas mãos.
Esta edição luxuosa e bem
cuidada, em capa dura, traz, além da história, uma introdução e um posfácio
escritos pelo próprio Ellison. Na parte inicial, para aguçar ainda mais nossa
curiosidade, o escritor faz duas sinceras revelações sobre si mesmo: primeiro,
que é uma pessoa muito difícil de se conviver; segundo, seu mais absoluto
deslumbramento e emoção com relação a essa maravilhosa graphic novel, que, diferentemente do texto de Roddenberry, ele
considera de uma fidelidade total ao roteiro que escreveu. Em suas palavras: “É
a cidade à beira da eternidade da minha imaginação”.
Ao final do livro, alguns
extras: as capas originais das cinco edições que depois dariam origem a essa
versão encadernada; uma demonstração detalhada do trabalho do artista na
confecção de uma página, dos primeiros esboços a lápis até a versão colorida
final; uma série muito legal de “easter
eggs”, comentados pelos dois irmãos roteiristas.
Resta-me falar sobre a
história, pontuando alguns comentários sobre as diferenças entre as versões de
Roddenberry e Ellison. O roteiro básico da trama: um tripulante da espaçonave
Enterprise penetra em um portal do tempo, indo para na Terra, na Nova York do
ano de 1930 (Grande Depressão). Ele modifica a História de forma a alterar todo
o futuro. O capitão Kirk e o Sr. Spock seguem no seu encalço pela mesma via,
com o objetivo de restaurar o fluxo do tempo ao que era originalmente.
A famigerada situação do
tráfico de drogas surge logo no início da graphic,
pelas mãos de um tripulante chamado Beckwith. Embora Roddenberry tenha excluído
esse elemento da história, possivelmente por considerá-lo inadequado para os
padrões da TV dos anos 60s, penso que seria um adendo enriquecedor, caso a
produção da série ocorresse nos dias atuais. Ellison, nas palavras do capitão
Kirk em seu diário, retrata uma situação muito plausível que a franquia de TV
jamais explorou em nenhuma de suas séries. Na TV, embora a missão das naves
Enterprise seja sempre mergulhar no espaço desbravando o desconhecido, todos os
tripulantes se comportam como se estivessem convivendo em seus próprios lares,
ou num trabalho rotineiro na Terra. Desde os primórdios da exploração espacial
pela humanidade, porém, sabemos que o espaço sideral desconhecido sempre deixou
marcas profundas, para o bem ou para o mal, naqueles que se aventuraram por
ele. Vários astronautas do mundo real atestam isso. Na versão brasileira da
música “Starman” (David Bowie),
gravada pela banda Nenhum de Nós (“Astronauta de Mármore”), o personagem diz: “Desculpe,
estranho, eu voltei mais puro do céu”. Na graphic
novel, Kirk diz em seu diário: “Quando deixamos a Terra, cada um dos 450
tripulantes da Enterprise foi considerado estável. Mas já se passaram dois
anos... Dois anos de forte pressão. Realizamos sondagens mentais com frequência,
mas sabemos que alguns estão mudados. Inclusive alguns podem ter se estragado:
só descobriremos quando a rachadura ficar aparente...” Uma forma como esse
estresse se manifesta na tripulação é a busca pelo alívio através das drogas; e,
como toda demanda logo encontra uma oferta, surge o traficante Beckwith. Ponto
para a HQ.
Descoberto, o meliante se
refugia no planeta abaixo, através do teletransporte. Enquanto na TV a nave era
sacudida por “ondas cronais” no espaço que a atraíram ao planeta, na HQ
trata-se de uma radiação proveniente do mesmo que faz os cronômetros correrem
em reverso. Como sabemos, na TV Beckwith foi substituído pelo Dr. McCoy, após
sofrer um acidente que o fez mergulhar num surto paranoico. Essa mudança no
roteiro concentrou a espinha dorsal dramática da história na santíssima
trindade Kirk/Spock/McCoy, o que vai convergir para um clímax de elevada carga
dramática no fim do episódio. A meu ver, ponto para a TV.
Kirk organiza seu grupo avançado e parte à
procura de Beckwith; em vez de Uhura, a HQ traz uma ordenança Janice Rand muito
mais ativa e determinada, como nunca se viu na série.
O grupo se depara com um
planeta totalmente morto e, seguindo as pegadas de Beckwith pelo deserto, chega
a uma cordilheira de picos altos e escarpados, sobre a qual se veem as ruínas
de uma enorme cidade. Kirk chama as ruínas de “uma cidade à beira da eternidade”,
dando uma conotação totalmente diferente ao título da história em relação
àquela imaginada por mim e por você.
Em vez do conhecido arco
vazado da TV, o “Guardião” da HQ é um grupo de seis velhos barbados, etéreos e
fantasmagóricos, que a meu ver falam muito mais do que deveriam, às vezes na
forma de “charadas”, as quais levarão Kirk e Spock, posteriormente, a identificar
o “ponto focal” do tempo a ser corrigido. Achei as “dicas” desses guardiões
forçadas, e me agradou mais a forma como, na TV, Spock chega a suas deduções resgatando
imagens no fluxo do tempo através de sua “gambiarra”. Ponto para a TV, mas com
uma ressalva: nunca engoli bem aquela traquitana construída com peças de rádio
de 1930. Na HQ, Spock usa um tricorder funcionando no limite de sobrecarga, o
que me pareceu mais plausível. Nesse aspecto, ponto para a HQ.
Uma diferença importante,
depois que o personagem fugitivo mergulha no fluxo do tempo: na TV, a Enterprise
simplesmente desaparece, como se nunca tivesse existido por causa das
alterações na História; na HQ, Kirk e o grupo avançado retornam à órbita, para
bordo de uma nave chamada Condor, tripulada por piratas sanguinários. Enquanto
Kirk e Spock partem em sua missão de resgate, o resto do grupo avançado fica
sitiado na sala do teletransporte, prestes a ser invadida pelos bandidos. A TV
poderia ter explorado esse elemento dramático de forma espetacular. Ponto para
a HQ.
Penso que tanto a versão da TV
quanto a da HQ perdem um pouco em ritmo, de formas adequadas a sua própria
mídia: na TV, a direção abusa escandalosamente dos closes nas fisionomias dos
personagens, sobretudo nos momentos de tensão. Além disso, a movimentação em
cena, muitas vezes, é lenta e burocrática, como quando McCoy surge, no planeta,
de trás das pedras, ou quando os mendigos do abrigo de Edith Keeler se movimentam
na fila do sopão. Parece uma cena de teatro, não de TV. Já na HQ há personagens
secundários que quebram o ritmo por não acrescentarem muito à trama principal,
como o zelador (e não Edith Keeler) que surpreende Kirk e Spock no porão do
abrigo, ou o veterano de guerra que vende maçãs e informações a Kirk sobre a
localização de Beckwith. Aqui ambas perdem ponto.
Sobre Edith Keeler: embora
seja muito parecida nas duas mídias, a versão live action da TV lhe deu mais graça e vivacidade. Também a forma
como Kirk se envolve com ela ganhou nuances mais sutis, delicadas, enquanto na
HQ esse envolvimento adquire uma intensidade e uma brusquidão estranhas, a ponto
de gerar uma verdadeira “discussão de relação” entre Kirk e Spock. A propósito,
o Spock da HQ tem algumas reações emocionais negativas, de rancor e desprezo,
que não combinam com a conduta que o consagrou junto aos fãs da franquia. Ponto
para a TV nisso.
Por outro lado, a HQ
acrescenta outro elemento que faria grande sucesso nos dias de hoje: confundido
com um chinês, Spock é vítima de racismo explícito assim que desembarca em
1930, mostrando que esse tipo de recurso é usado como arma sempre que um grupo
se vê na situação de “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Em 1930, a
Grande Depressão; nos dias de hoje, as levas de refugiados das guerras no Oriente
Médio invadindo a Europa. Ponto para ela.
Não vou comentar sobre o
clímax dramático que ocorre na solução final da trama, que até hoje me traz
lágrimas aos olhos, porque em nenhuma das duas mídias esse final merece um spoiler. Entretanto, devo declarar que
um pequeno detalhe, que difere um final do outro, me faz dar DEZ pontos para a
versão televisiva, em vez da versão em quadrinhos. É ler e conferir. Nesse ponto,
Roddenberry brilhou. Nem o castigo digno de um Prometeu que recai sobre o vilão
Beckwith me faz reverter esse ponto para a HQ.
Minha conclusão é de que
ambas as versões, a de Ellison e a de Roddenberry, merecem ser conhecidas pelos
fãs e pelos não-fãs de Jornada nas Estrelas. Ambas foram premiadas com todo
mérito em seu tempo. A despeito do rompimento entre os autores, as duas obras
se unem, potencializando as qualidades uma da outra, para elevar “A Cidade à Beira da Eternidade” e os gênios
por trás de sua criação ao patamar de imortais, através de suas obras-primas. Perca
isso, leitor, e você merece uma estadia prolongada na prisão klingon de
Rura-Penthe.