sexta-feira, 21 de outubro de 2016

RUMO À ETERNIDADE


     Se você nunca ouviu falar de Harlan Ellison, ou não gosta de ficção científica ou passou os últimos 50 anos preso em Talos IV. Trata-se de um dos mais importantes escritores de ficção científica e terror, de sua geração e de todas mais. Basta dizer que Ellison coleciona, além de diversos outros prêmios de destaque, nada menos que onze prêmios Hugo e cinco Nebula, as duas mais prestigiosas premiações da literatura de FC mundial. OK, mas você prefere histórias em quadrinhos de super-herois, certo? Saiba, então, que foi Ellison quem criou a saga de Jarella, uma das coadjuvantes mais marcantes das HQs do Incrível Hulk da Marvel. Entre as obras mais famosas desse escritor fabuloso, que, se não me engano, jamais havia sido publicado no Brasil, estão o conto  “I Have No Mouth, and I Must Scream” (1967) e a novela  "A Boy and His Dog" (1969), transformada em filme em 1975. Isso sem falar nos inúmeros roteiros para telesséries como Babylon 5, Outer Limits, A Noviça Voadora, O Homem da U.N.C.L.E., Jornada nas Estrelas, etc.
     É sobre esta última que queremos falar. Percebeu quando eu disse, acima, que Ellison jamais “havia sido” publicado por aqui? Bem, isso acaba de mudar de uma forma, para mim, inesperada. A editora Mythos lançou, neste mês de outubro de 2016, a versão em quadrinhos de “The City on the Edge of Forever” (Cidade à Beira da Eternidade), uma adaptação fiel do roteiro original de Harlan Ellison para aquele que é, na opinião da maioria dos fãs e na minha própria, o melhor dos 79 episódios da série clássica de Jornada nas Estrelas, um dos dois únicos episódios da franquia a ganharem um prêmio Hugo.  
     Um pouco de história: apesar da qualidade habitual do texto de Ellison, alguns elementos do roteiro desagradaram a Gene Roddenberry, criador de Jornada nas Estrelas, como, por exemplo, uma situação de comércio de drogas ilícitas a bordo da Enterprise. Roddenberry modificou extensamente o texto original até que se transformasse na versão que foi ao ar. Isso levou ao rompimento da relação entre os dois autores, e Ellison entrou para a seleta lista de desafetos de Gene, de quem passou a ser um crítico feroz. Curiosamente, assim como a versão adaptada de Roddenberry ganhou o Hugo em 1968, o roteiro original de Harlan Ellison ganhou, no mesmo ano, o Writers Guild Awards para melhor drama episódico na televisão. Tanto talento junto não merecia cair no esquecimento. Assim como o episódio da TV encontra-se à disposição em inglês e também aqui no Brasil, em DVD, blue-ray e, ocasionalmente, na TV paga, o roteiro de Ellison foi publicado nos EUA, como livro, em 1976. A adaptação em quadrinhos viu a luz apenas em 2014, pelas mãos habilidosas de Scott Tipton & David Tipton (roteiro adaptado) e J.K. Woodward (arte). Como eu disse, para meu total encantamento, a versão em português acaba de chegar ao Brasil, e às minhas mãos.
     Esta edição luxuosa e bem cuidada, em capa dura, traz, além da história, uma introdução e um posfácio escritos pelo próprio Ellison. Na parte inicial, para aguçar ainda mais nossa curiosidade, o escritor faz duas sinceras revelações sobre si mesmo: primeiro, que é uma pessoa muito difícil de se conviver; segundo, seu mais absoluto deslumbramento e emoção com relação a essa maravilhosa graphic novel, que, diferentemente do texto de Roddenberry, ele considera de uma fidelidade total ao roteiro que escreveu. Em suas palavras: “É a cidade à beira da eternidade da minha imaginação”.
     Ao final do livro, alguns extras: as capas originais das cinco edições que depois dariam origem a essa versão encadernada; uma demonstração detalhada do trabalho do artista na confecção de uma página, dos primeiros esboços a lápis até a versão colorida final; uma série muito legal de “easter eggs”, comentados pelos dois irmãos roteiristas.
     Resta-me falar sobre a história, pontuando alguns comentários sobre as diferenças entre as versões de Roddenberry e Ellison. O roteiro básico da trama: um tripulante da espaçonave Enterprise penetra em um portal do tempo, indo para na Terra, na Nova York do ano de 1930 (Grande Depressão). Ele modifica a História de forma a alterar todo o futuro. O capitão Kirk e o Sr. Spock seguem no seu encalço pela mesma via, com o objetivo de restaurar o fluxo do tempo ao que era originalmente.
     A famigerada situação do tráfico de drogas surge logo no início da graphic, pelas mãos de um tripulante chamado Beckwith. Embora Roddenberry tenha excluído esse elemento da história, possivelmente por considerá-lo inadequado para os padrões da TV dos anos 60s, penso que seria um adendo enriquecedor, caso a produção da série ocorresse nos dias atuais. Ellison, nas palavras do capitão Kirk em seu diário, retrata uma situação muito plausível que a franquia de TV jamais explorou em nenhuma de suas séries. Na TV, embora a missão das naves Enterprise seja sempre mergulhar no espaço desbravando o desconhecido, todos os tripulantes se comportam como se estivessem convivendo em seus próprios lares, ou num trabalho rotineiro na Terra. Desde os primórdios da exploração espacial pela humanidade, porém, sabemos que o espaço sideral desconhecido sempre deixou marcas profundas, para o bem ou para o mal, naqueles que se aventuraram por ele. Vários astronautas do mundo real atestam isso. Na versão brasileira da música “Starman” (David Bowie), gravada pela banda Nenhum de Nós (“Astronauta de Mármore”), o personagem diz: “Desculpe, estranho, eu voltei mais puro do céu”. Na graphic novel, Kirk diz em seu diário: “Quando deixamos a Terra, cada um dos 450 tripulantes da Enterprise foi considerado estável. Mas já se passaram dois anos... Dois anos de forte pressão. Realizamos sondagens mentais com frequência, mas sabemos que alguns estão mudados. Inclusive alguns podem ter se estragado: só descobriremos quando a rachadura ficar aparente...” Uma forma como esse estresse se manifesta na tripulação é a busca pelo alívio através das drogas; e, como toda demanda logo encontra uma oferta, surge o traficante Beckwith. Ponto para a HQ.
     Descoberto, o meliante se refugia no planeta abaixo, através do teletransporte. Enquanto na TV a nave era sacudida por “ondas cronais” no espaço que a atraíram ao planeta, na HQ trata-se de uma radiação proveniente do mesmo que faz os cronômetros correrem em reverso. Como sabemos, na TV Beckwith foi substituído pelo Dr. McCoy, após sofrer um acidente que o fez mergulhar num surto paranoico. Essa mudança no roteiro concentrou a espinha dorsal dramática da história na santíssima trindade Kirk/Spock/McCoy, o que vai convergir para um clímax de elevada carga dramática no fim do episódio. A meu ver, ponto para a TV.
      Kirk organiza seu grupo avançado e parte à procura de Beckwith; em vez de Uhura, a HQ traz uma ordenança Janice Rand muito mais ativa e determinada, como nunca se viu na série.
     O grupo se depara com um planeta totalmente morto e, seguindo as pegadas de Beckwith pelo deserto, chega a uma cordilheira de picos altos e escarpados, sobre a qual se veem as ruínas de uma enorme cidade. Kirk chama as ruínas de “uma cidade à beira da eternidade”, dando uma conotação totalmente diferente ao título da história em relação àquela imaginada por mim e por você.
     Em vez do conhecido arco vazado da TV, o “Guardião” da HQ é um grupo de seis velhos barbados, etéreos e fantasmagóricos, que a meu ver falam muito mais do que deveriam, às vezes na forma de “charadas”, as quais levarão Kirk e Spock, posteriormente, a identificar o “ponto focal” do tempo a ser corrigido. Achei as “dicas” desses guardiões forçadas, e me agradou mais a forma como, na TV, Spock chega a suas deduções resgatando imagens no fluxo do tempo através de sua “gambiarra”. Ponto para a TV, mas com uma ressalva: nunca engoli bem aquela traquitana construída com peças de rádio de 1930. Na HQ, Spock usa um tricorder funcionando no limite de sobrecarga, o que me pareceu mais plausível. Nesse aspecto, ponto para a HQ.
     Uma diferença importante, depois que o personagem fugitivo mergulha no fluxo do tempo: na TV, a Enterprise simplesmente desaparece, como se nunca tivesse existido por causa das alterações na História; na HQ, Kirk e o grupo avançado retornam à órbita, para bordo de uma nave chamada Condor, tripulada por piratas sanguinários. Enquanto Kirk e Spock partem em sua missão de resgate, o resto do grupo avançado fica sitiado na sala do teletransporte, prestes a ser invadida pelos bandidos. A TV poderia ter explorado esse elemento dramático de forma espetacular. Ponto para a HQ.
     Penso que tanto a versão da TV quanto a da HQ perdem um pouco em ritmo, de formas adequadas a sua própria mídia: na TV, a direção abusa escandalosamente dos closes nas fisionomias dos personagens, sobretudo nos momentos de tensão. Além disso, a movimentação em cena, muitas vezes, é lenta e burocrática, como quando McCoy surge, no planeta, de trás das pedras, ou quando os mendigos do abrigo de Edith Keeler se movimentam na fila do sopão. Parece uma cena de teatro, não de TV. Já na HQ há personagens secundários que quebram o ritmo por não acrescentarem muito à trama principal, como o zelador (e não Edith Keeler) que surpreende Kirk e Spock no porão do abrigo, ou o veterano de guerra que vende maçãs e informações a Kirk sobre a localização de Beckwith. Aqui ambas perdem ponto.
     Sobre Edith Keeler: embora seja muito parecida nas duas mídias, a versão live action da TV lhe deu mais graça e vivacidade. Também a forma como Kirk se envolve com ela ganhou nuances mais sutis, delicadas, enquanto na HQ esse envolvimento adquire uma intensidade e uma brusquidão estranhas, a ponto de gerar uma verdadeira “discussão de relação” entre Kirk e Spock. A propósito, o Spock da HQ tem algumas reações emocionais negativas, de rancor e desprezo, que não combinam com a conduta que o consagrou junto aos fãs da franquia. Ponto para a TV nisso.
     Por outro lado, a HQ acrescenta outro elemento que faria grande sucesso nos dias de hoje: confundido com um chinês, Spock é vítima de racismo explícito assim que desembarca em 1930, mostrando que esse tipo de recurso é usado como arma sempre que um grupo se vê na situação de “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Em 1930, a Grande Depressão; nos dias de hoje, as levas de refugiados das guerras no Oriente Médio invadindo a Europa. Ponto para ela.
     Não vou comentar sobre o clímax dramático que ocorre na solução final da trama, que até hoje me traz lágrimas aos olhos, porque em nenhuma das duas mídias esse final merece um spoiler. Entretanto, devo declarar que um pequeno detalhe, que difere um final do outro, me faz dar DEZ pontos para a versão televisiva, em vez da versão em quadrinhos. É ler e conferir. Nesse ponto, Roddenberry brilhou. Nem o castigo digno de um Prometeu que recai sobre o vilão Beckwith me faz reverter esse ponto para a HQ.

     Minha conclusão é de que ambas as versões, a de Ellison e a de Roddenberry, merecem ser conhecidas pelos fãs e pelos não-fãs de Jornada nas Estrelas. Ambas foram premiadas com todo mérito em seu tempo. A despeito do rompimento entre os autores, as duas obras se unem, potencializando as qualidades uma da outra, para elevar  “A Cidade à Beira da Eternidade” e os gênios por trás de sua criação ao patamar de imortais, através de suas obras-primas. Perca isso, leitor, e você merece uma estadia prolongada na prisão klingon de Rura-Penthe.